LIBERDADE VERSUS AUTORIDADE NA EDUCAÇÃO – Bertrand Russell

Bertrand Russell

LIBERDADE VERSUS AUTORIDADE NA EDUCAÇÃO – Bertrand Russell

 

A liberdade, tanto em educação como em outras áreas, deve ser uma questão de grau. Algumas liberdades não podem ser toleradas. Certa vez, encontrei uma senhora que afirmava que nenhuma criança poderia jamais ser proibida de fazer qualquer coisa, porque uma criança deve desenvolver sua natureza por si mesma. “O que fazer se a natureza a levar a engolir alfinetes?”, perguntei; mas lamento dizer que a resposta foi um mero vitupério. E, no entanto, a criança com livre arbítrio mais cedo ou mais tarde engolirá alfinetes, beberá veneno de vidros de remédio, cairá de uma janela alta ou se conduzirá a um final infeliz. Em uma idade pouco posterior, os meninos, quando tiverem oportunidade, não tomarão banho, comerão demais, irão fumar até adoecerem, ficarão gripados por deitarem-se com pés molhados, e assim por diante – além do que se divertirão importunando senhores mais velhos, que podem não ter os poderes de Eliseu de réplica. Portanto, aquele que defende a liberdade na educação não deve alegar que as crianças podem fazer tudo que lhes agrade o dia inteiro. É preciso haver um elemento de disciplina e de autoridade; a questão é saber dosá-lo e exercê-lo.

A educação pode ser vista por muitos enfoques: o do Estado, o da Igreja, o do mestre-escola, o dos pais ou até mesmo (embora isso seja com frequência esquecido) o da própria criança. Cada um desses pontos de vista é parcial; cada um deles contribui com algo para o ideal da educação, mas também contribui com elementos negativos. Examinaremos esses aspectos sucessivamente, ponderando os argumentos a favor ou contra eles.

Comecemos com o Estado, a força mais poderosa na decisão do rumo da educação moderna. O interesse do Estado pela educação é muito recente. Não existiu na Antiguidade ou na Idade Média; até a Renascença, a educação só era valorizada pela Igreja. Na Renascença, surgiu um interesse pela escolaridade avançada, levando à fundação de instituições como o Collège de France para contrapor-se à eclesiástica Sorbonne. A Reforma, na Inglaterra e na Alemanha, fomentou um desejo da parte do Estado de ter algum controle sobre as universidades e as escolas de gramática, a fim de impedir que permanecessem uns viveiros do papismo. Mas seu interesse logo se desvaneceu. O Estado não teve uma atuação decisiva ou contínua na instrução até o recente movimento moderno pela educação universal compulsória. Não obstante, o Estado agora tem um papel mais forte em relação às instituições educacionais do que todos os outros fatores combinados.

Os motivos que levaram à educação universal compulsória são diversos. Seus defensores mais enérgicos foram estimulados pelo sentimento de que é desejável ser capaz de ler e escrever, de que uma população ignorante é uma desgraça para um país civilizado e de que a democracia é impossível sem educação. Esses motivos foram reforçados por outros. Logo se percebeu que a educação tinha vantagens comerciais, diminuía a criminalidade juvenil, e dava oportunidade de controlar as populações dos bairros pobres. Os que se opunham ao clero viram na educação estatal uma chance de combater a influência da Igreja; esse motivo influiu de maneira decisiva na Inglaterra e na França. Os nacionalistas, sobretudo depois da Guerra Franco-prussiana, consideravam que a educação universal aumentaria o fortalecimento nacional. Todas essas razões, no entanto, foram a princípio subsidiárias. O principal motivo para se adotar a educação universal foi o sentimento de que o analfabetismo era ignóbil.

A instituição, uma vez estabelecida, foi fundada pelo Estado para ser utilizada de diversos modos. Torna os jovens mais dóceis, tanto para o bem quanto para o mal. Melhora o comportamento e diminui a criminalidade, facilita uma ação comum com fins públicos; faz com que a comunidade seja mais compreensível quanto às diretrizes centrais. Sem isso, a democracia não pode existir exceto em uma configuração vazia. Mas a democracia, tal como concebida pelos políticos, é uma forma de governo, ou seja, é um método para induzir as pessoas a agirem de acordo com o desejo de seus líderes, com a impressão de que suas ações estão em conformidade com suas aspirações. Do mesmo modo, a educação estatal adquire uma certa influência. Ensina o jovem (até onde possa) a respeitar as instituições existentes, a evitar toda a crítica fundamental aos poderes instituídos e a olhar as nações estrangerias com suspeita e desprezo. Isso expande a solidariedade nacional à custa do internacionalismo e do desenvolvimento individual. O dano causado ao desenvolvimento individual advém da pressão indevida da autoridade. As emoções coletivas – e não as emoções individuais – são encorajadas, e a discordância em relação às crenças predominantes é reprimida com severidade. A uniformidade é desejada porque é conveniente para o administrador, a despeito do fato de que ela só pode ser mantida pela atrofia mental. Os males resultantes são de tal dimensão que se pode questionar seriamente se a educação universal fez até agora bem ou mal.

O ponto de vista da Igreja quanto à educação é, na prática, não muito diferente da visão do Estado. Contudo, existe uma divergência importante: a Igreja preferiria que o laicismo não fosse de nenhum modo ensinado, salvo sob a insistência do Estado. O Estado e a Igreja desejam instilar crenças que provavelmente seriam dissipadas pelo livre questionamento. Mas o credo do Estado é mais fácil de ser inculcado em uma população capaz de ler jornais, ao passo que o credo da Igreja é mais fácil de ser instilado em uma população iletrada. O Estado e a Igreja são hostis ao pensamento, mas a Igreja é também (embora agora sub-repticiamente) hostil à instrução. Isso terminará, já está terminando, na medida em que as autoridades eclesiásticas aperfeiçoam a técnica de prover instrução sem estimular a atividade mental – uma técnica que no passado os jesuítas lideraram.

O professor, no mundo moderno, raramente pode exprimir seu ponto de vista. Ele é nomeado por uma autoridade educacional e “recebe o bilhete azul” se constatarem que está facultando educação. Independentemente desse motivo econômico, o professor é exposto de modo inconsciente a tentações. Ele exerce, ainda de forma mais direta do que o Estado e a Igreja, a disciplina; oficialmente ele sabe o que seus alunos desconhecem. Sem algum elemento de disciplina e autoridade é difícil manter uma classe em ordem. É mais fácil punir um menino que demonstre tédio do que um que demonstre interesse. Além disso, mesmo o melhor professor tende a exagerar sua importância, e a pensar que é possível e desejável moldar seus alunos em uma espécie de seres humanos segundo sua concepção. Lytton Strachey descreve Dr. Arnold andando em torno do lago de Como meditando sobre a “perversidade moral”. A maldade moral, para ele, era aquilo que ele queria mudar em seus alunos. A crença de que essa malignidade estava muito impregnada neles justificava seu exercício de poder, e considerar-se como um governante cuja obrigação era mais a de castigar do que a de amar. Essa atitude – expressa de várias formas em diversas épocas – é natural a qualquer professor zeloso que não se importe em transmitir uma influência enganosa de auto importância. Não obstante, o professor é a força mais relevante no que diz respeito à educação, e é principalmente para ele ou ela que devemos olhar em busca do progresso.

O professor também almeja a boa reputação de sua escola. Isso o leva a desejar que seus alunos distingam-se em competições atléticas e exames escolares, o que conduz a uma certa seleção de garotos mais bem dotados em detrimento de outros. Para a média, o resultado é ruim. É muito melhor para um menino jogar mal do que ver os outros jogando bem. H.G. Wells, em seu livro Life of Sanderson of Oundle, relata como este renomado professor lutou contra tudo o que deixasse as faculdades de um menino médio não exercitadas ou negligenciadas. Quando se tornou diretor, constatou que apenas alguns meninos selecionados cantavam na capela; eles eram treinados como um coro e os demais escutavam. Sanderson insistiu que todos deveriam cantar, com ou sem talento musical. Ao assumir essa posição, ele se distinguiu da propensão natural de um professor que se importa mais com sua reputação do que com seus alunos. É claro, se todos nós partilhássemos méritos com sabedoria não haveria conflito entre esses dois motivos: a escola que proporcionasse o melhor para seus alunos conseguiria mais merecimento. Mas, em um mundo movimentado, sucessos espetaculares sempre obterão mérito desproporcional à sua real importância e, portanto, algum conflito entre os dois motivos dificilmente poderá ser evitado.

Agora abordarei o ponto de vista dos pais. Este difere segundo o status econômico do pai: um assalariado médio tem desejos diferentes daqueles de um profissional liberal médio. Esse assalariado quer pôr seus filhos na escola o mais rápido possível para diminuir o incômodo em casa; ele também deseja tirá-los o quanto antes a fim de lucrar com seus ganhos. Quando recentemente o governo britânico decidiu cortar os gastos em educação, propôs-se que as crianças não deveriam entrar na escola antes da idade de seis anos, e que não deveriam ser obrigadas a permanecer nela após a idade de treze anos. A primeira proposta causou tamanho protesto público que teve de ser abolida: a indignação de mães preocupadas (recentemente emancipadas) foi irreprimível. A última proposta reduzindo a idade para sair do colégio não foi impopular. Os candidatos parlamentares que advogavam uma educação melhor conseguiram aplausos unânimes daqueles que compareciam às reuniões, mas constataram nos debates que assalariados apolíticos (que eram a maioria) queriam seus filhos livres para conseguir um trabalho remunerado o mais rápido possível. As exceções eram principalmente aqueles que esperavam que seus filhos pudessem ascender na escala social por meio de uma educação melhor.

Os profissionais liberais têm uma visão bem diferente. Sua renda é resultado de terem recebido uma educação melhor do que a média e, assim, desejavam proporcionar essa vantagem a seus filhos. Para atingir esse objetivo estão dispostos a fazer grandes sacrifícios. No entanto, em nossa sociedade competitiva atual o que será ambicionado por um pai comum não é uma boa educação, mas sim uma educação que seja melhor do que a de outras pessoas. Isso seria exequível rebaixando o nível geral e, portanto, não podemos esperar que um profissional liberal demonstre entusiasmo em relação a oportunidades de uma educação mais elevada para os filhos dos assalariados, Se todos que desejassem pudessem obter uma educação na área médica, a despeito de quão pobres seus pais fossem, é óbvio que os doutores ganhariam menos, tanto pela crescente competitividade quanto pela melhoria da saúde da comunidade. O mesmo fato aplica-se à lei, ao serviço civil, e assim por diante. Nesse sentido, as boas coisas que um profissional liberal deseja para seus filhos, ele não as quereria para a grande parte da população, a menos que tivesse um espírito público excepcional.

O defeito fundamental dos pais em nossa sociedade competitiva é que eles querem que seus filhos lhes deem crédito. Isso está enraizado no instinto, e só pode ser curado por esforços direcionados para tal. O defeito existe também, embora em menor grau, nas mães. Todos nós sentimos de modo instintivo que os sucessos de nossos filhos refletem glória sobre nós, enquanto seus fracassos nos deixam envergonhados. Infelizmente, os sucessos que nos enchem de orgulho são com frequência de caráter indesejável. Dos primórdios da civilização até quase os dias de hoje – e ainda hoje na China e no Japão – os pais têm sacrificado a felicidade de seus filhos no casamento ao decidir com quem se casarão, escolhendo quase sempre a noiva ou noivo mais rico disponível. No mundo ocidental (exceto em parte na França) as crianças libertaram-se dessa escravidão pela rebelião, mas os instintos dos pais não mudaram. Nem a felicidade nem a virtude, mas o sucesso material é o desejo de um pai médio pra seus filhos. Ele quer que seja de tamanha relevância que ele possa se vangloriar dele para seus amigos, e esse desejo domina em grande parte seus esforços para educa-los.

A autoridade, caso deva gerir a educação, precisa ficar nas mãos de um ou dos diversos poderes já discutidos: o Estado, a Igreja, o professor e os pais. Vimos que não podemos confiar em nenhum deles para zelar de modo adequado pelo bem estar da criança, visto que cada um deles deseja direcioná-la para um determinado fim que não diz respeito ao seu bem estar. O Estado quer que a criança sirva para o engrandecimento da nação e para apoiar a forma existente de governo. A Igreja deseja que a criança sirva para aumentar o poder do clero. O professor, em um mundo competitivo, geralmente considera sua escola tal como o Estado julga a nação, e quer que a criança enalteça o colégio. O pai deseja que a criança glorifique a família. A criança, como um fim em si mesma, como um ser humano distinto com uma reivindicação a qualquer felicidade ou bem estar possíveis, não está inserida nesses vários propósitos externos, salvo de modo muito parcial. Infelizmente, a criança não tem a experiência necessária para guiar sua própria vida e, assim, é uma presa para interesses prejudiciais que florescem em sua inocência. Esse é o motivo que dificulta a inclusão da educação como um problema político. Mas primeiro comentaremos o ponto de vista da criança.

É óbvio que a maioria das crianças, se fosse deixada para se conduzir por si mesma, não aprenderia a ler ou escrever, e cresceria menos adaptada às circunstâncias da vida. Nesse sentido, é preciso haver instituições educacionais, e as crianças devem se submeter, até um certo limite, à autoridade. Porém, em vista do fato de que nenhuma autoridade pode ser inteiramente confiável, é necessário ter como meta a menor autoridade possível, e tentar pensar em maneiras pelas quais os desejos naturais e impulsos dos jovens possam ser utilizados na educação. Isso é mais factível do que julgamos, pois, afinal de contas, a vontade de adquirir conhecimento é natural para a maioria dos jovens. O pedagogo tradicional, ao possuir um conhecimento sem valor para compartilhar e desprovido totalmente da capacidade de transmiti-lo, imaginou que os jovens tinham horror intrínseco à instrução, mas nesse caso ele se enganou por não ter percebido suas próprias imperfeições. Há um conto encantador de Tchekhov sobre um homem que tentou ensinar um gatinho a caçar ratos. Quando ele não corria atrás dos ratos, o homem batia nele e o resultado foi que mesmo já adulto o gato ficava aterrorizado na presença de um rato. “Esse é o homem”, acrescenta Tchekhov, “que me ensinou latim.” Os gatos ensinam seus filhotes a caçarem ratos, porém esperam até que o instinto deles tenha despertado. Então os gatinhos concorda com suas mamães que o conhecimento merece ser adquirido, de modo que a disciplina não é necessária.

Os primeiro dois ou três anos da vida escaparam até agora da dominação do pedagogo, e todas as autoridades concordam que são esses os anos da vida em que aprendemos mais. Toda criança aprende a falar por seus próprios esforços. Qualquer pessoa que tenha observado uma criança pequena sabe que os esforços são consideráveis. A criança escuta propositadamente, olha com atenção o movimento dos lábios, pratica sons durante o dia inteiro e concentra-se com um surpreendente entusiasmo. É claro que os adultos a encorajam por orgulho, mas não lhes ocorre puni-la nos dias em que não aprende uma palavra nova. Tudo o que eles proporcionam é a oportunidade e elogio. É duvidoso que algo mais seja necessário em qualquer estágio.

Precisa-se fazer com que a criança ou o jovem sinta que vale a pena adquirir conhecimento. Algumas vezes é difícil, porque na verdade o saber não tem valor. É também difícil quando apenas uma quantidade considerável de conhecimento em algum campo é útil de forma que no início o aluno tende a sentir-se meramente entediado. Nesses casos, entretanto, a dificuldade não é insuperável. Tomemos, por exemplo, o ensino da matemática. Sanderson de Oundle percebeu que quase todos os seus alunos estavam interessados em maquinaria e ofereceu-lhes oportunidade de construir máquinas bem elaboradas Durante esse trabalho prático, foi necessário fazer cálculos e isso estimulou o interesse pela matemática requerida para o sucesso de um empreendimento construtivo, pelo qual eles sentiam grande entusiasmo. Esse método é caro e exige uma habilidade paciente da parte do professor. Mas segue o instinto do aluno e, assim, implica menos tédio com algum esforço intelectual maior. O esforço é natural tanto para os animais quanto para os homens, porém deve haver um empenho para que haja um estímulo instintivo. Um jogo de futebol requer mais esforço do que andar em círculo para dar tração a um moinho, contudo, um é prazeroso e o outro uma punição. É um engano supor que o esforço mental possa ser raramente um prazer; na verdade, certas condições são necessárias para torna-lo agradável e até há pouco tempo nenhuma tentativa fora feita para criar essas circunstâncias na educação. As principais condições são: primeiro, um problema que precisa de solução; segundo, um sentimento de esperança em relação à possibilidade de obter uma solução. Note o modo pelo qual David Copperfield aprendeu aritmética:

Mesmo quando as lições acabavam, o pior ainda estava por vir na forma de uma soma aterrorizante. Isso era inventado para mim, transmitido oralmente pelo Sr. Murdstone e começava, “se eu for a uma loja de queijos e comprar cinco mil queijos Gloucester duplos por 4,5 pennies cada, qual será o valor do pagamento” – ciente disso percebo o prazer secreto da Srta. Murdstone. Concentrei-me nesses queijos sem qualquer resultado ou esclarecimento até a hora do jantar; quando me converti em um mulato por absorver a sujeira da lousa nos poros da minha pele, deram-me uma fatia de pão para ajudar-me com os queijos, e caí em desgraça durante o resto da noite.

Obviamente, o pobre garoto não poderia ter qualquer interesse nesses queijos, ou qualquer expectativa de fazer a soma correta. Se ele houvesse querido uma caixa de um certo tamanho, e tivessem-lhe dito para poupar sua mesada até que pudesse comprar madeira e pregos suficientes, suas aptidões matemáticas teriam sido estimuladas de modo surpreendente.

Não deve haver nada hipotético nas somas que uma criança deve fazer. Certa vez li um relato de um menino sobre uma lição de aritmética. A governanta apresentou um problema:

– Se um cavalo vale três vezes mais do que um pônei, e o pônei vale £22, quanto custa um cavalo?

– Ele está doente? – perguntou o menino.

– Isso não faz diferença – disse a governanta.

– Oh, mas James (o cavalariço) diz que isso faz uma grande diferença.

A capacidade de entender uma verdade hipotética é um dos desenvolvimentos mais tardios da faculdade lógica, e não deve ser esperada em crianças pequenas. No entanto, isso é uma digressão, e retomarei nosso tema principal.

Eu não afirmo que todas as crianças possam ter seus interesses intelectuais despertados por um estímulo adequado. Algumas têm uma inteligência bem abaixo da média e requerem um tratamento especial. É muito prejudicial misturar em uma classe crianças cujas aptidões mentais são diferentes: os mais inteligentes se entediarão por causa de explicações que eles claramente entendem, e os menos dotados ficarão preocupados porque se espera que eles compreendam coisas que ainda não captaram. Os temas e os métodos devem ser adaptados à inteligência do aluno. Macaulay foi aprender matemática em Cambridge, mas é óbvio, por suas caras, que foi pura perda de tempo. Ensinaram-me latim e grego, porém não gostei, porque achava uma tolice aprender uma língua que não era mais falada. Creio que tudo do pouco resultado proveitoso advindo dos anos de estudos dos clássicos eu aprenderia em um mês na vida adulta. Depois de um mínimo básico, deveria se levar em conta as preferências pessoas e os alunos só deveriam receber ensinamento sobre assuntos que considerassem interessantes. Isso pressiona os professores, que acham mais fácil serem maçantes, em especial quando têm uma carga de trabalho excessiva. Mas as dificuldades podem ser superadas ao conceder aos professores menos horas de atividade e instrução quanto à arte de ensinar, o que está ocorrendo no treinamento de professores das escolas elementares, porém não está sendo aplicado aos professores das universidades ou das escolas públicas.

A liberdade educacional tem muitos aspectos. Antes de tudo, a liberdade de aprender ou não. Depois, a liberdade de escolha do aprendizado. Na educação mais tardia, existe a liberdade de opinião. A liberdade de aprender ou não só deve ser parcialmente concedida na infância. É necessário ter certeza de que todos os que não são imbecis aprendam a ler e a escrever. Até que ponto isso pode ser feito pela mera oferta de oportunidade, só a experiência mostrar. No entanto, mesmo que apenas a oportunidade seja suficiente, as crianças devem ter a chance de confiarmos nelas. A maioria preferiria brincar do lado de fora, quando as oportunidades necessárias estivessem faltando. Mais tarde, isso pode ser deixado à escolha dos jovens como, por exemplo, se devem ir para a universidade; alguns gostariam de cursar a universidade, outros não. Isso constituiria um princípio de seleção tão bom quanto qualquer outro para os exames de ingresso.  Não se deveria permitir aos alunos que não trabalhem permanecer em uma universidade. Os jovens ricos que agora desperdiçam seu tempo na faculdade estão desmoralizando os outros e ensinando a si mesmos a serem inúteis. Se um trabalho sério fosse exigido como condição de permanência, as universidades deixariam de ser atraentes para pessoas que não apreciam incursões intelectuais

A liberdade de escolha do aprendizado deve ser muito mais estimulada do que nos dias de hoje. Penso que seja necessário agrupar temas por suas afinidades naturais; há graves desvantagens no sistema eletivo, que deixa um jovem livre para escolher um conjunto de assuntos desconectados. Se eu fosse organizar um programa educativo em Utopia, com fundos ilimitados, daria a cada criança com cerca de doze anos alguma instrução nos clássicos, matemática e ciência. Após dois anos, se evidenciaria em que as aptidões da criança recairiam, e seus gostos seriam uma indicação segura desde que não houvesse “opções suaves”. Por conseguinte, deveria-se permitir a cada menino e menina que assim o desejasse especializar-se aos quatorze anos. Primeiro, a especialização seria bem ampla, definindo-se gradualmente à medida que a educação progredisse. A época na qual era possível ter uma cultura universal já passou. Um homem diligente pode conhecer alguma coisa de história e literatura que requerem um conhecimento das línguas clássicas e modernas. Ou ele pode saber algo de matemática, ou uma ou duas matérias científicas. Mas o ideal de uma educação “global” está ultrapassado; foi destruído pelo progresso do conhecimento.

A liberdade de opinião, da parte dos professores e dos alunos, é a mais importante dos diversos tipos de limitação. Tendo em vista que essa premissa não existe, cabe recapitular os argumentos a seu favor.

O argumento fundamental para a liberdade de opinião é a dúvida de todas as nossas crenças. Se tivéssemos certeza de que conhecemos a verdade, haveria algo para recomendar seu ensino. Mas nesse caso o ensinamento não implicaria autoridade, visto sua racionalidade inerente. Não é necessário promulgar uma lei proibindo alguém de ensinar matemática se ele tiver opiniões heréticas quanto à tabela de multiplicação, pois aqui a verdade é clara e não necessita ser reforçada por penalidades. Quando o Estado intervém para assegurar o ensino de alguma doutrina, ele age desse modo porque não há uma evidência conclusiva em favor dessa doutrina. O resultado é que o ensinamento não é verdadeiro, mesmo que possa ser verdade. No estado de Nova York, até há pouco tempo, era ilegal ensinar que o comunismo é benéfico; na União Soviética, é ilegal ensinar que o comunismo é pernicioso. Sem dúvida, uma dessas opiniões é verdadeira e a outra é falsa, porém ninguém sabe qual. Ou Nova York ou a União Soviética ensinava a verdade e prescrevia a falsidade, mas em nenhum desses locais o ensinamento era ministrado de modo verdadeiro, uma vez que cada um apresentava uma proposição duvidosa como certa.

A diferença entre verdade e veracidade é importante nesse contexto. A verdade é para os deus; de nosso ponto de vista é um ideal do qual podemos nos aproximar, mas sem esperança de alcança-lo. A educação nos prepararia para uma abordagem o mais próxima possível da verdade, e para atingir esse objetivo deve-se ensinar a veracidade. A veracidade, segundo minha perspectiva, é o hábito de formar nossas opiniões com base na evidência, e sustenta-las com o grau de convicção que a evidência garante. Esse grau não nos assegura a certeza completa e, portanto, devemos estar sempre prontos para uma nova evidência contra crenças prévias. Além disso, quando agimos fundamentados em uma crença, devemos, se possível, apenas considerar essa ação como útil, mesmo que nossa crença seja mais ou menos inexata; é preciso evitar ações desastrosas, a menos que nossa crença seja exatamente verdadeira. Na ciência, um observador constata seus resultados junto com um “provável erro”: mas quem já ouviu falar de um teólogo ou de um político confessando um provável erro em seus dogmas, ou mesmo admitindo que qualquer erro é concebível? Porque na ciência, na qual nos aproximamos mais do conhecimento real, um homem pode confiar com segurança na força de seu caso, ao passo que onde nada é conhecido, a afirmação imoderada e a hipnose são os caminhos usuais para convencer os outros a partilhar nossas crenças. Se os fundamentalistas pensassem que têm um bom argumento contra a evolução, eles não tornariam seu ensinamento legal.

            O hábito de ensinar a alguém ortodoxia, política, religião ou moral acarreta todos os tipos de efeitos danosos. Para começar, isso exclui do ensinamento profissionais que aliam honestidade com vigor intelectual, precisamente os homens que terão o melhor efeito moral e mental sobre seus alunos. Farei três comentários. Primeiro, quanto à política: espera-se que um professor de economia na América ensine doutrinas como determinação para os ricos e poderosos da elite dos milionários; caso não o faça, perceberá que é aconselhável partir para outro lugar, como o Sr. Laski, antigo professor de Harvard, agora um dos mais renomados professores da London School of Economics. Segundo, em relação à religião: a imensa maioria dos eminentes intelectuais não crê na religião cristã, mas esconde o fato em público, porque teme perder seus rendimentos. Assim, acerca de todos os assuntos mais importantes a maioria dos homens cujas opiniões e argumentos seriam valiosíssimos está condenada ao silêncio. Terceiro, do ponto de vista moral: praticamente todos homens não foram castos em algum momento de suas vidas; é claro que aqueles que ocultam esse fato são piores do que os que revelam, visto que eles acrescentam a hipocrisia à culpa. No entanto, os cargos para professores só estão abertos para os hipócritas. Isso se deve apenas aos efeitos da ortodoxia sobre a escolha e o caráter dos professores.

            Agora, abordarei o efeito nos alunos, o qual irei considerar sob dois ângulos, intelectual e moral. Do ponto de vista intelectual, o estímulo para um jovem é um problema de importância prática óbvia quando opiniões divergentes são emitidas. Por exemplo, um jovem que esteja aprendendo economia precisa ouvir palestras de individualistas e socialistas, protecionistas e adeptos do livre comércio, inflacionários e daqueles que acreditam no padrão-ouro. Ele deve ser encorajado a ler os melhores livros de várias escolas recomendados por aqueles que acreditam neles. Isso o ajudaria a avaliar argumentos e evidências para saber que nenhuma opinião é totalmente correta, e julgar os homens por sua qualidade, em vez de pela sua conformidade com as ideias pré-concebidas. A história deve ser ensinada não apenas do ponto de vista de um único país, mas também de outros países. Se a história fosse ensinada por franceses na Inglaterra e por ingleses na França, não haveria desacordos entre os dois países, pois cada um deles compreenderia o enfoque do outro. Um jovem deveria aprender a pensar que todas as questões estão em aberto, e que um argumento deve ser seguido a qualquer parte que ele conduza. As necessidades da vida prática destruirão essa atitude tão logo ele comece a ganhar seu sustento; mas até então ele deve ser estimulado a provar as alegrias da livre especulação.

            Moralmente, também, o ensinamento de uma ortodoxia a um jovem é muito prejudicial. Não é só pelo fato de que ele compele os professores mais capacitados a serem hipócritas e, portanto, a transmitirem um exemplo moral ruim. Há ainda, e o que é mais importante, o fato de que isso encoraja a intolerância e as formas perniciosas do instinto de rebanho. Edmund Gosse em seu livro Father and Son relata como, quando ele era criança, seu pai contou-lhe que iria se casar de novo. O garoto notou que era algo do qual o pai se envergonhava, então por fim, perguntou aterrorizado: “Pai, ela é anabatista?”. E, na verdade, era. Até esse momento, ele acreditara que os anabatistas eram malvados. Nesse sentido, as crianças de escolas católicas acreditam que os protestantes são maus, crianças em qualquer escola de países de língua inglesa creem que os ateus são cruéis, e as crianças na Alemanha pensam que os franceses são perversos. Quando uma escola aceita como parte de sua tarefa ensinar uma opinião que não possa ser defendida intelectualmente (como quase todas es escolas fazem), ela é impelida a dar a impressão de que aqueles que têm uma opinião oposta são maléficos, caso contrário isso pode não gerar a paixão necessária para repelir os assaltos da razão. Assim, pelo bem da ortodoxia as crianças tornam-se intolerantes, não-caridosas, cruéis e belicosas. Essa circunstância será inevitável enquanto as opiniões definidas forem prescritas na política, na moral e na religião.

            Por fim, ocasionado por esse dano moral ao indivíduo, existe um prejuízo não narrado à sociedade. Guerras e perseguições são inúmeras por toda parte, e em todos os lugares elas foram causadas pelo ensinamento nas escolas. Wellington costumava dizer que a batalha de Waterloo fora vencida nos campos de jogos de Eton. Ele teria sido mais verdadeiro se tivesse dito que a guerra contra a França revolucionária fora instigada nas classes de aula de Eton. Em nossa era democrática, Eton perdeu sua importância; agora, são as escolas elementares e secundárias comuns que devemos considerar. Em cada país, por meio do acenar de bandeiras, do dia do Império, das celebrações de 4 de Julho, do Corpo de Treinamento de Oficiais, etc., tudo é realizado para incutir em meninos um gosto pelo homicídio, e nas meninas a convicção de que homens que cometem assassinatos são os que mais merecem respeito Todo esse sistema de degradação moral ao qual meninos e meninas inocentes são expostos se tonaria inviável se as autoridades concedessem liberdade de opinião a alunos e professores.

            A organização rígida é a fonte do mal. As autoridades educacionais não veem as crianças, como supostamente a religião deve fazer, como seres humanos cujas almas devem ser salvas. Elas as considera um material a ser usado para esquemas grandiosos: futura “mão de obra” nas fábricas ou “baionetas” na guerra, etc. Nenhum homem está apto a educar a menos que sinta em cada aluno um fim em si mesmo, com seus direitos e sua personalidade, não uma mera peça em um jogo de quebra-cabeça, um soldado em um regimento, ou um cidadão em um Estado. O respeito pela personalidade humana é o início da sabedoria, em todas as questões sociais, mas acima de tudo em educação.

RUSSELL, Bertrand. Ensaios céticos; tradução de Marisa Motta – Porto Alegre, RS: L&PM Editores, 2010

INDETERMINISMO E LIBERDADE EM HUME – Alfredo Pereira Junior

Tive problemas para transferir o arquivo do PDF pra cá, portanto, por enquanto tenho somente como informar o link para que vocês possam baixar o texto. Em breve colocarei o texto aqui além do link.

Segue link:

http://www.scielo.br/pdf/trans/v16/v16a02.pdf

 

Texto do professor Alfredo Pereira Junior, da UNESP de Botucatu.

O sentido da política em Hannah Arendt – Ana Paula Repolês Torres

Este é um dos textos para trabalho bimestral. Deixo no site o texto sem as citações e as referências para não ocupar tanto espaço, portanto, aconselho baixar o arquivo no site Scielo.br para ter acesso às referências do autor e às citações.

Segue link:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732007000200015&lng=en&nrm=iso

ou

http://www.scielo.br/pdf/trans/v30n2/a15v30n2.pdf

O sentido da política em Hannah Arendt

Ana Paula Repolês Torres

Jamais existiu um governo baseado exclusivamente nos meios da violência.

(Hannah Arendt)

 

Após Dachau, Auschwitz, os Gulags siberianos, em síntese, depois das experiências totalitárias nazista e stalinista, qual o significado da política? Partindo de uma constatação arendtiana de que ação política é sinônimo de liberdade, será que podemos admitir como “política” programas de desumanização, de eugenia, isto é, de objetivação do homem? Será que a “política totalitária” (ARENDT, 1990, p.514), responsável pela transformação da própria natureza humana, por tornar possível o mal radical, absoluto e imperdoável, não ocultaria, em realidade, ações não-políticas, até mesmo anti-políticas? Não há contradição no próprio termo “política totalitária”? Por outro lado, será que a “politização” plena realizada por tais regimes totalitários e a concomitante e paradoxal extinção do espaço de liberdade necessariamente nos conduz a dar razão aos liberais, a entender como incompatíveis liberdade e política, só surgindo a primeira quando a última cessa de existir? Em outros termos, será que a política se restringe ao estatal e a liberdade possui somente uma dimensão negativa, uma liberdade a-política de “ter”, de “crer”, enfim, uma “liberdade da política” (ARENDT, 2001, p.195)? Tais indagações nos levam, com Arendt, a formular a seguinte questão: “Tem a Política ainda algum sentido?” (ARENDT, 2006, p.38). O que de fato é a política?

Ocorre que a perplexidade diante das catástrofes do século XX, bem como a constatação de que a destruição total, a eliminação da Humanidade e de toda vida orgânica da face da Terra é uma possibilidade real, fez não só com que se questionasse o que representa uma decisão “política” em uma guerra de extermínio, mas principalmente reforçou uma já tradicional aversão pela política, o anseio por uma ilusória extinção da mesma. Dessa forma, pode-se dizer, seguindo o desenvolvimento dos argumentos de Arendt, que o fato da “política” ter levado à desumanização completa dos indivíduos nos campos de concentração e de ter como resultado possível a extinção do fenômeno humano está por detrás dos preconceitos contra a mesma nas sociedades atuais, pois na medida em que política é identificada com violência, com domínio desenfreado de uns sobre outros norteado por interesses egoístas e mesquinhos, na medida em que se tem por evidente que “todo poder corrompe e que o poder absoluto corrompe ainda mais”,2 a passividade, a apatia dos indivíduos, a renúncia ao exercício da cidadania, têm sido cultivadas, nas palavras de Arendt, essa “condenação do poder” corresponde a um “desejo inarticulado das massas” e tem gerado a “fuga à impotência” (ARENDT, 2006, p.28).

Partindo então do pressuposto, baseado no pensamento de Hannah Arendt, de que a política não é domínio, de que não se baseia na distinção entre governantes e governados e nem é mera violência, mas ação em comum acordo, ação em conjunto, sendo reflexo da condição plural do homem e fim em si mesma, já que não é um meio para objetivos mais elevados, como, por exemplo, a preservação da vida, significando liberdade, somos levados a perguntar se esses juízos naturalizados não seriam falsos e perigosos, isto é, será que ao se desconhecer a“verdadeira política”, ao se confundir “aquilo que seria o fim da política com a política em si”(ARENDT, 2006, p.25) não estaria sendo disseminado o imobilismo, um sentimento de inutilidade de qualquer ação, fazendo com que o homem não se reconheça como um sujeito histórico, como um ser capaz de interromper o fluxo inexorável dos acontecimentos? Aceitar que a política não possui um sentido não equivaleria negar significado à nossa própria existência, não nos reduziria a autômatos guiados por algum anão oculto, como “o jogador de xadrez de Maelzel” do conto de Edgar Allan Poe citado por Benjamin, ou, nos termos de Kant, não nos tornaria indistintos dos animais, já que determinados pelas necessidades da natureza e incapazes de iniciar uma cadeia causal por nós mesmos?

Ocorre que, como indicamos acima, esses preconceitos não são novos, havendo toda uma tradição de identificação da política com domínio, com violência, cuja origem remonta à desvinculação entre política e liberdade realizada pelos filósofos que primeiro trataram do tema, em clara oposição à experiência da pólis grega. Nesse sentido, Arendt ressalta que não havia sequer o interesse pelo problema da liberdade na Antiguidade, tendo o mesmo surgido tardiamente na filosofia, com Epicteto, como uma forma do eu se relacionar com uma realidade externa que lhe seria adversa, resultando então de um estranhamento do mundo. Assim, a liberdade é pensada como interioridade, sendo este o único meio daqueles que não possuíam um lugar no mundo “sentirem-se livres”, o que possibilitava aos homens serem escravos e livres ao mesmo tempo. Mais especificamente, podemos dizer que a liberdade em Epicteto resume-se a ser livre dos próprios desejos, a desejar somente aquilo que se pode obter, em oposição à concepção de que liberdade seja fazer tudo o que se deseja.

A partir de então, Arendt visualiza todo um desenvolvimento do conceito de liberdade a partir do conceito de vontade, remetendo-se assim ao pensamento cristão de Paulo e Agostinho, os quais também localizaram no espaço interior da consciência o problema da liberdade, dessa forma, esta última, ao invés de ser compreendida como a possibilidade de trazer ao mundo algo que não existia, passa a ser identificada ao livre-arbítrio, a uma escolha entre duas alternativas dadas. Trata-se, no sentido agostiniano, de um antagonismo dentro da própria vontade, de um querer e um não querer ao mesmo tempo, entre querer e não fazer, sendo a vontade poderosa e impotente, pois é, ao mesmo tempo, quem dá as ordens e quem não as obedece. Segundo Arendt, essa aproximação de liberdade e vontade pode ser elencada como “uma das causas pelas quais ainda hoje equacionamos quase automaticamente poder com opressão ou, no mínimo, com governo sobre outros” (ARENDT, 2001, p.210). Entretanto, de toda essa digressão o que nos interessa é a perda da concepção política de liberdade, do entendimento de que a liberdade não pode ser obtida na solidão e que não se resume ao “quero”, mas que também necessita do “posso”, em outros termos, podemos dizer que liberdade não significa fazer o que se deseja, não significa soberania, pois só se é livre perante outros que também o sejam.

Liberdade entre iguais foi justamente no que se baseou a pólis grega, pois diferentemente do âmbito doméstico onde reinava o despotismo e a desigualdade, do espaço privado destinado à satisfação das necessidades da vida, onde era justificada a violência e natural o domínio de uns sobre outros, do pai sobre esposa, filhos e escravos, a pólis surge como um espaço onde a distinção entre governantes e governados não fazia sentido, onde todos aqueles que igualmente obtiveram libertação das necessidade vitais podiam tornar-se livres, podiam participar e construir um mundo comum através de feitos e palavras. Desse modo, percebe-se que a liberdade não era obtida no relacionamento do eu consigo mesmo, mas sim na interação com seus semelhantes, pressupondo tanto a presença de outros “eus”, quanto a existência de um espaço público organizado que permitiria a todos os homens livres “aparecer”, isto é, agir.

Compreende-se, então, porque Arendt considera a liberdade e a ação política como sinônimas, haja vista que não é enclausurando-se em si mesmo, utilizando-se unicamente da capacidade de pensar ou de querer, que um indivíduo passa a ser livre, a liberdade existe onde a condição plural do homem não seja desconsiderada, sendo nada mais que ação, em outras palavras, o indivíduo só é livre enquanto está agindo, nem antes, nem depois. Ressalte-se, todavia, que a ação política só pode ser entendida como liberdade se a mesma não sofre qualquer forma de funcionalização, de instrumentalização, como a presente nas atividades do labor e do trabalho,3 cujo valor não estaria, ao contrário da ação política, no desempenho em si mesmo, mas sim em algum resultado, um fim a ser alcançado quando termina o processo produtivo. Tal como as artes de realização, como a música, a dança, o teatro, a ação política é valorada pelo seu “virtuosismo”, entendido este, a partir do conceito amoral devirtù de Maquiavel, como performance, bem como necessita de uma “audiência” e de um espaço para que o “espetáculo” possa se realizar, nas palavras de Arendt, a pólis grega foi “uma espécie de anfiteatro onde a liberdade podia aparecer” (ARENDT, 2001, p.201).

O fato é que se a ação política fosse produto da fabricação, se, no sentido Aristotélico, fosse poiesis e nãopráxis,4 se tivesse um objetivo exterior à mesma, criando assim um resultado que passaria a ter existência por si próprio, não dependendo mais do processo produtivo que o gerou, tal como as obras de arte, não haveria necessidade de novas ações, de constante recordação, de reencenações do momento inicial para a manutenção das próprias intituições políticas, sendo então necessário termos sempre em mente que “as instituições políticas são manifestações e materializações do poder; petrificam e decaem quando o poder vivo do povo cessa de lhes sustentar” (ARENDT, 2004b, p.120). Nessa linha, podemos dizer, seguindo os passos de Arendt, que a estabilidade e permanência de Roma foi ocasionada pela autoridade atribuída à fundação, autoridade esta que se baseava na continuidade de uma tradição, “na vitalidade do espírito da fundação” (ARENDT, 1988, p.161), e que pode ser visualizada no fato de todas as inovações e mudanças subseqüentes terem sido consideradas como desenvolvimento e aumento do ato inaugural. Isso explica o fato das guerras romanas não propugnarem o extermínio dos vencidos, mas sim a formação de parceiros, a transformação, através de acordos e alianças, dos inimigos em amigos, o que só contribuia para ampliar a República.

O que é importante ser ressaltado aqui é que a ação política enquanto fundação em Roma também significava liberdade, pois nada mais era do que um início, um novo começo ao qual se vinculavam todos aqueles que ainda viriam ao mundo. È justamente essa experiência política romana que está por detrás de uma outra noção de liberdade, não mais como interioridade, exposta por Agostinho em “A Cidade de Deus”. Assim, segundo tal filósofo cristão, cada homem que nasce é um novo começo no mundo, e não do mundo, representando então a natalidade a possibilidade de surgimento do novo, o que leva Arendt a afirmar que a liberdade foi criada com o próprio homem, e por ser ele um início, é também o iniciador.

Essa identificação entre ação política e liberdade pode ser constatada através das próprias palavras que em grego e em latim era utilizadas pela designar a ação. Como bem lembra Arendt, em grego havia archein, que significava “começar”, “ser o primeiro” e, “governar” e prattein, cujo sentido era “atravessar”, “realizar” e “acabar”; em latim, por sua vez, de maneira correlata, temos agere, que significava “pôr em movimento”, “guiar” e gerere, cujo significado era “conduzir”. Nas palavras de Arendt, é “como se toda ação estivesse dividida em duas partes: o começo, feito por uma só pessoa, e a realização, à qual muitos aderem para <<conduzir>>, <<acabar>>, levar a cabo o empreendimento.” (ARENDT, 2005a, p.202). Resta então dizer que o que pretendemos enfatizar ao analisar o conceito de política para Hannah Arendt é que a mesma implica não só a possibilidade, latente em todos os seres humanos, de “começar”, de criar algo novo, fazendo surgir o insperado, o imprevisível, mas também, e não de maneira secundária, que a ação política nunca se realiza no isolamento, sempre é uma ação em conjunto, configurando um acordo entre iguais. Dessa forma, por mais que o início seja obra de um único indivíduo, há a necessidade de “outros” para que a ação seja concluída, havendo então uma complementariedade entre as dimensões agonística e consensualista da ação política em Hannah Arendt. Por conseguinte, a política, apesar de ser iniciada pela espontaneidade humana, surge como relação, ela existe entre homens, em outras palavras, não é da essência do homem, considerado isoladamente, ser um “animal político” como pensava Aristóteles, mas por viver num mundo plural, a presença, o olhar do “outro”, é uma marca indelével do fenômeno humano, só podendo ser “apagada” em momentos de “delírio”.

Percebe-se, a partir dessa segunda dimensão da ação, a importância da alteridade para que a ação seja concluída, dessa forma poderíamos afirmar que os feitos dos heróis gregos não seriam grandes sem Homero, sem os poetas que os pudessem tornar imortais, por isso a criação da pólis pode ser explicada por essa necessidade de “platéia”, de “espectadores” para que os acontecimentos extraordinários, que nesse espaço político podiam tornar-se corriqueiros, não fossem esquecidos. Por outro lado, a ação como início, como manifestação do espírito agonístico dos gregos também nos ensina que correlata à ação política está a busca por distinção, isto é, a luta por reconhecimento da própria singularidade, pois, como diz Arendt, é na coragem de agir, de “aparecer” no espaço público, que o homem revela “quem é”, que ele confirma a sua própria identidade, a imagem que possui de si mesmo. Sem essa dimensão compartilhada, sem esse “sexto sentido”, esse sensus communis, não seria possível ao homem saber-se real, ou seja, ele não poderia confiar em seus sentidos sensoriais, em outros termos, não saberia se existe ou se não passa de um sonho, tal como colocou Primo Levi ao falar sobre os reflexos que o regime de segregação criado pelas leis fascistas impuseram a si por ser judeu, já que ele teria sido condenado a“viver num mundo só meu, um tanto apartado da realidade, povoado de racionais fantasmas cartesianos” (LEVI, 1988, p.11).

Ocorre que, por vivermos em um mundo plural, não podemos prever plenamente as conseqüências de nossas ações, e isto não se deve a uma deficiência congitiva, mas sim a um certo grau de imprevisibilidade de toda ação, haja vista que, por estarmos inseridos em uma rede de relações, onde toda ação gera reações, não podemos saber integralmente qual o resultado do processo irreversível que desencadeamos no mundo. Por isso Arendt diz que apesar de agirmos, não somos os autores da história, pois o significado da mesma somente pode ser encontrado no “fim”, isto é, de maneira retrospectiva por quem se dispõe a narrá-la. Nessa linha, podemos dizer que a constituição de nós mesmos, de nossa biografia, do sentido de nossa existência, bem como a constituição da comunidade política em que vivemos é uma atividade plural, que é incapaz de ser realizada solitariamente, pois a antes mencionada rede de relações que está por detrás dos negócios humanos não permite que realmente sejamos soberanos e onipotentes, confirmando-se então a natureza fantasmagórica do “poder-Uno” tal como coloca Claude Lefort (LEFORT, 1987, p.84).

Dessa forma, podemos dizer que ninguém governa sozinho, sendo que até mesmo aquele que se utiliza da violência, que governa através de implementos, precisa de uma certa organização, do apoio de outros para a implementação de seu objetivo, nas palavras de Arendt, diríamos que mesmo “o mandante totalitário, cujo maior instrumento de domínio é a tortura, precisa de uma base de poder – a polícia secreta e sua rede de informantes” (ARENDT, 2004b, p.128), o que significa dizer que a violência, apesar de ser uma variável que não pode ser ignorada, não é um operador universal, não sendo suficiente para constituir uma comunidade política. Como bem sabia Maquiavel (MAQUIAVEL, 2001, p.55-56), a violência pode destruir o poder, a conquista pode desfacelar um regime de liberdade, mas não é capaz de construir nada, o que equivale a dizer que, ao contrário do que pensava Clausewitz, a guerra não é a “continuação da política por outros meios” (CLAUSEWITZ apudARENDT, 2004b, p.98), haja vista que onde a violência prolifera o poder se esvai.

Ressalte-se, todavia, que dificilmente existirá a forma extrema do poder – Todos contra Um -, ou a forma extrema da violência – Um contra Todos -, o que ocorre é um movimento pendular de aproximação para cada uma das extremidades. Assim, para exemplificar, podemos citar as experiência totalitárias do século XX como ocasiões em que se pretendeu levar a violência a seu máximo, o que significava uma “morte” anunciada, pois na medida em que se progredia na destruição da própria base de poder, com a eliminação dos “amigos” e não só dos “inimigos”, o que o regime estava fazendo era nada mais do que aniquilando a si mesmo. Percebe-se então que o terror totalitário, ao fazer com que o medo e a solidão atingisse a todos, até mesmo aqueles que os apoiavam, destruindo assim qualquer espaço comum, não estava fazendo nada além do que gerar instabilidade, do que disseminar “o germe de sua própria destruição” (ARENDT 2, p.530).5

Ocorre que, como bem sabia Arendt, a aniquilação do espaço comum iniciada com a atomização da sociedade de massas e potencializada com os regimes totalitários é concomitante com a eliminação dos parâmetros normativos que são configuradores do político, pois sem a mediação do Direito, enquanto liberdade e igualdade, só há poder que devora a si mesmo. Ressalte-se, todavia, que é a dimensão principiológica e simbólica do Direito que é automaticamente negada por um regime totalitário e que nos possibilita considerá-los como a perpetuação da exceção, haja vista que eventuais criações de leis positivas não conferem legitimidade aos regimes de terror, o que nos permite concluir que se não existe política tal como Arendt a concebe, tampouco há Direito nos regimes totalitários. Dessa forma, por mais que haja formalização jurídica em um regime totalitário, por mais que Hitler tenha chegado ao poder observando os procedimentos legais, tendo o partido nazista obtido aproximadamente 13 milhões de votos nas eleições de julho de 1932, por mais que tenha sido aprovada a denominada Lei de Autorização, que permitia ao gabinete governar em situações de emergência sem submeter seus atos à apreciação do parlamento, não podemos considerar, ao contrário do que pensava Kelsen,6 tal regime como um Estado de Direito.

O que podemos então constatar é que o regime que impeça a articulação de um mundo comum entre os indivíduos, mundo este configurador da política e do Direito, que pretenda a concentração do poder em uma só pessoa está fadado a entrar em crise, pois não há governo que permaneça sem uma base de sustentação, em outros termos, poderíamos dizer que mesmo que todos os homens se tornem “Um-Só-Homem” (ARENDT, 1990, p.519), que o governante se intitule o representante do “povo”, procedendo a uma reificação do mesmo através da adoção do ideal de uma sociedade transparente, unificada, sem diferenças, sem conflitos, tal governo não passa de uma abstração, de um mito cujo trágico destino já está traçado, haja vista a artificialidade e “fragilidade” do “consenso” que o sustenta, pois este não está baseado em convicções, mas sim na vacuidade, na ausência do pensar, o que leva à submissão à regra pela regra, a uma absolutização da lei, que se for radicalmente alterada em caso de eventual mudança de regime, provavelmente levará consigo o apoio dos adeptos do regime anterior. Nas palavras de Arendt,

(…)todas as nossas experiências nos dizem que precisamente os membros da sociedade respeitável, aqueles que não tinham sido afetados pela comoção intelectual e moral dos primeiros estágios do período nazista, foram os primeiros a se render. Eles simplesmente trocaram um sistema de valores por outro. Diria que, portanto, os não-participantes foram aqueles cuja consciência não funcionava dessa maneira, por assim dizer, automática – como se dispuséssemos de um conjunto de regras aprendidas ou inatas que aplicamos caso a caso, de modo que toda nova experiência ou situação já é prejulgada, e precisamos apenas seguir o que aprendemos ou o que possuímos de antemão. (ARENDT, 2004a, p.106-107).

É justamente a capacidade de pensar, a possibilidade de realização do diálogo interno consigo mesmo que acreditamos estar por detrás do “sentimento de legalidade” (ARENDT, 2004a, p.103) que emana daqueles que se colocam contra a “lei” de seu país em situações limite, como ocorreu com os irmãos Scholl e demais integrantes do denominado grupo “Rosa Branca”, que ousaram se expor, posicionar-se, assumindo a responsabilidade pelo simou não diante do momento histórico em que estavam inseridos, editando planfetos de repúdio ao regime nazista, postura esta cuja recordação somente nos revela que a ação política como liberdade não é uma utopia, mas uma possibilidade sempre aberta, sendo esta a ” promessa da política” (ARENDT, 2005).

Se todos, e não somente os “especialistas”, como ressalta Arendt, somos capazes de pensar, somos também capazes de fazer “milagres”, de realizar o imprevisível, o improvável, ou seja, somos todos maiores e portanto responsáveis até mesmo pela ausência de ação, pela servidão voluntária a que porventura tenhamos submetido a nós mesmos, o que demonstra que pensar e ser livre é uma questão de escolha, de coragem de se valer do próprio entendimento, como diria Kant (KANT, 1974, p.100), cabendo a tão-somente a nós, enquanto sujeitos marcados pelo devir, refutar o argumento do Grande Inquisidor de Dostoyesvski de que seja desejo eterno e unânime da Humanidade encontrar alguém diante do qual se curvar.

Dessa forma, a política, tal como Arendt a entende, como criação do novo, do inesperado, como ação plural, resultado do amor ao mundo e não como violência, não somente se apresenta como uma alternativa, como algo realizável, sendo inerente à condição humana, mas também representa uma necessidade, pois é condição para a constituição do indivíduo e da comunidade político-jurídica na qual nos movemos, haja vista que o reconhecimento do outro em sua diversidade não somente repercute na confirmação do sentido da minha vida, mas antes é essencial para a existência daquilo que me transcende, que me precedeu e que provavelmente não desaparecerá após o meu “fim”.

Em outros termos, o mundo comum, as instituições, o Direito, tudo aquilo que pretende realizar a mediação entre homens, erigindo mais pluralidade e menos deserto, mais compartilhamento do que isolamento, só pode ser construído se a política for sinônimo de liberdade.

O modelo liberal e republicano de liberdade: uma escolha disjuntiva? – Cesar Augusto Ramos

Este é um dos textos para trabalho bimestral. Deixo no site o texto sem as citações e as referências para não ocupar tanto espaço, portanto, aconselho baixar o arquivo no site Scielo.br para ter acesso às referências do autor e às citações.

Segue link:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732011000100004&lng=en&nrm=iso

ou

http://www.scielo.br/pdf/trans/v34n1/a04v34n1.pdf

O modelo liberal e republicano de liberdade: uma escolha disjuntiva?

Cesar Augusto Ramos

Doutor em Filosofia Política pela UNICAMP. Professor do Programa de Pós Graduação em Filosofia PUCPR. 

 

Introdução

A partir da modernidade, a associação política dos homens assume a forma de uma societas ou civitas: uma organização de fundo patrimonial, criada pelo contrato e juridicamente regulamentada. A política deixa de constituir a unidade ética do espaço público da antiga koinonia politike, e sofre uma inflexão que modifica o sentido da vida social dos indivíduos. Ela passa a ter por referência a sociabilidade privada de pessoas preocupadas em organizar a sociedade civil segundo regras adequadas à proteção e à promoção dos interesses individuais vinculados a direitos. Dessa organização decorre o governo, no qual prerrogativas jurídicas são postuladas com base na realidade primária dos direitos subjetivos, notadamente a liberdade individual.

A antiga primazia dos deveres à comunidade se desloca para os direitos naturais dos indivíduos _ com destaque para a liberdade _ em oposição à tradição que afirmava que o homem só atinge sua perfeição no seio da comunidade política. Tributária do individualismo dos novos tempos, a liberdade informa e se constitui, de maneira cada vez mais abrangente e decisiva, o objeto da filosofia política desse período, sobretudo, para o liberalismo.

O modelo liberal da política1 transfere para o direito (lei) a normatividade das ações humanas. Sem recorrer a qualquer concepção de bem moral, o regramento jurídico da vida e das relações sociais determina os limites da liberdade individual, protege os direitos, especialmente as liberdades individuais, e define o alcance do poder político. Uma vez que o ponto de partida é a liberdade individual, a finalidade da vida não é mais a fruição política da cidadania na dimensão pública, mas a autonomia dos sujeitos na esfera privada da sociedade civil. O inevitável processo de “despolitização” da sociedade e dos conflitos sociais é decorrência da ênfase da política atrelada à garantia da pessoa com privilégios e imunidades. Contudo, a filosofia política não se esgota na forma de pensar a política segundo o paradigma jurídico do liberalismo. O resgate da tradição do republicanismo, e com ela a adoção de outra concepção da liberdade, significou a possibilidade de compreendê-la como fenômeno político diante da insatisfação e insuficiências do modelo hegemônico jurídico-liberal da liberdade negativa.

Este artigo tem por objetivo apresentar essas duas maneiras de compreender a liberdade: a liberdade negativa do liberalismo _ definida como a esfera do livre agir do indivíduo pela ausência de impedimentos externos indevidos, e norteada pelo paradigma jurídico dos direitos individuais, que instrumentaliza a cidadania para a defesa desses direitos _ e a liberdade política do republicanismo, que se define como não-dominação e se orienta pelo modelo das virtudes cívicas da cidadania com valor substancial.

Pretende-se, ainda, mostrar que a oposição entre o ponto de vista jurídico-liberal e o republicanismo não está na aceitação ou na recusa da liberdade subjetiva e dos direitos individuais. A divergência repousa, antes, sobre a maneira pela qual essa liberdade e direitos podem ser fundamentados, manifestando, assim, a sua finalidade: se pela via autorreferencial de princípios da justiça que subordinam a política como instrumento para a realização e proteção dos direitos individuais; ou pela via das referências intersubjetivas que associam os direitos a relações de mútuo reconhecimento e aos deveres da cidadania, com vistas à proteção do bem comum da comunidade, e cujo escopo maior é a liberdade como não-dominação. Desse modo, a defesa dessa forma de liberdade, propugnada pelo republicanismo _ e sem abandonar a conquista liberal do pluralismo e da liberdade negativa _ pode contribuir para uma efetiva ampliação e garantia dos princípios da liberdade e da igualdade.

Assim, sustentamos a tese _ próxima do chamado republicanismo neorromano _ de que a concepção de liberdade como não-dominação pode garantir a efetiva autonomia dos sujeitos, assegurando o direito subjetivo da liberdade. Mas isso só é possível porque essa concepção envolve determinados pressupostos ou condições, os quais, devidamente articulados, efetivam o caráter subjetivo da liberdade, superando as suas limitações que decorrem do “juridicismo” liberal. Tais pressupostos são três e podem ser formulados nas seguintes proposições: A) A primeira afirma que a vida do homem se realiza e se desenvolve na dimensão social do viver político do ser humano, e que a liberdade, nessas condições, só se constitui e se afirma por intermédio de relações de mútuo reconhecimento. Esta é a face intersubjetiva da liberdade como não-dominação. B) A segunda, de ordem objetiva, diz respeito à proposição de que a comunidade política necessita ser constituída pelo autogoverno dos cidadãos, pela mediação do império da lei, criando condições objetivas políticas e éticas adequadas para a ausência de ingerências indevidas, e que são garantidas pelo direito. C) A terceira, de fundo subjetivo, concerne à vigilância do cidadão mediante a atuação política da cidadania como atribuição de virtudes cívicas, a qual pretende viabilizar e sustentar o ideal de liberdade como não-dominação e, inclusive, assegurar com eficácia o próprio elemento liberal da liberdade negativa como ausência de impedimentos.

I. A concepção liberal de liberdade (negativa)

A filosofia política do liberalismo, lídima expressão dos novos tempos, retoma algumas teses do Direito Natural Moderno, particularmente a questão da liberdade individual. Desde o início, com J. Locke, o liberalismo clássico procurou avaliar e julgar a legitimidade e a extensão do poder da sociedade política, vinculando a sua finalidade à questão do alcance da ação livre dos homens diante desse poder, e que pode assim ser formulada: até onde somos governados?

A discussão liberal contemporânea sobre a liberdade, tributária do liberalismo clássico,2 avança no sentido de precisar o âmbito e a extensão da liberdade individual, bem como as possibilidades do seu constrangimento mediante a lei. No século XX, essa discussão foi equacionada, de modo exemplar, pelas análises de I. Berlin, no ensaio Dois Conceitos de Liberdade. Segundo esse autor, a liberdade pode ser compreendida tanto no sentido negativo como positivo.

No primeiro sentido, ela é definida como ausência de impedimentos. Ser livre significa não sofrer a interferência de outrem e fazer tudo aquilo que as leis permitem. A liberdade negativa pressupõe um espaço de não ingerência, da ausência de impedimentos ou obstáculos, para o livre exercício de ações que deliberadamente desejamos realizar. Os indivíduos serão livres, se eles forem sujeitos das suas escolhas e decisões, definidas num campo não arbitrário de interferência. Por essa razão, a liberdade passa a ser chamada de negativa, isto é, ela existe na ausência de ações que podem criar impedimentos arbitrários e indevidos à livre atividade dos sujeitos. A relação entre a lei e a liberdade é externa, pois a primeira não promove a última, apenas constitui um instrumento de proteção da liberdade como direito fundamental.

Quanto à compreensão da liberdade negativa como ausência de impedimento, Berlin segue a intuição hobbesiana:3

De um modo geral, diz-se que sou livre na medida em que nenhum indivíduo ou conjunto de indivíduos interfere com a minha atividade. A liberdade política, neste sentido, é muito simplesmente a área dentro da qual um homem pode agir sem ser impedido por outros. Se eu for impedido por outros de fazer o que poderia fazer se assim não fosse, nessa medida eu não sou livre; e se essa área for restringida por outros homens para lá de um determinado mínimo, poder-se-á dizer que sou coagido ou, até, oprimido. (BERLIN, 1998,p. 246).

Segue-se que a liberdade deve, basicamente, ser contrastada à coerção indevida de terceiros, à interferência deliberada e ilegítima de alguém, num campo de ação no qual desejo agir sem ser impelido por outros: “[…] ser livre significa para mim não haver a intromissão de outrem. Quanto mais vasta a área de não-interferência tanto mais ampla será a minha liberdade.” (BERLIN, 1998, p. 247). Esta acepção de liberdade visa responder à pergunta: “[…] qual a área dentro da qual ao sujeito _ um indivíduo ou um grupo de indivíduos _ é ou deve ser permitido fazer ou ser o que é capaz de fazer ou ser, sem a interferência de outras pessoas?” (BERLIN, 1998, p. 246).

No sentido positivo, a liberdade é compreendida como a capacidade de autodeterminação do indivíduo, por meio da autonomia da vontade. De inspiração rousseauista, esse conceito de liberdade opera com a ideia de autonomia da vontade. Ela é positiva, porque indica a presença de uma faculdade de volição que decide (a vontade autônoma), mediante a qual o indivíduo age e escolhe sempre de acordo com as preferências racionais sobre como ele deve, livremente, viver. Nesse sentido, a liberdade significa o desejo de o indivíduo ser senhor de si próprio e da sua atividade:

A sua vida e as suas decisões dependam de si próprio e não de qualquer tipo de forças exteriores. Quer ser o instrumento dos seus próprios atos de vontade e não dos de outros homens. Quer ser um sujeito, não um objeto […] Quer ser alguém e não ninguém; um agente _ que decide, e não deixa que decidam por ele, autônomo e não determinado pela natureza exterior ou por outros homens como se tratasse de um objeto, de um animal ou de um escravo incapaz de representar um papel humano, isto é, de conceber metas e práticas próprias e de as concretizar. (BERLIN, 1998, p. 255-256).

A liberdade positiva visa a responder à questão: “[…] o que ou quem constitui a origem do controle ou da interferência capaz de determinar que alguém faça isto em vez daquilo?” (BERLIN, 1998, p. 246). Ou então: quem é o senhor das nossas decisões, quem deseja ser o nosso mestre? Trata-se, portanto, da origem incondicionada da ação de um sujeito que nasce da autonomia da vontade, sendo irrelevante o alcance ou as circunstâncias externas à ação livre. Eu sou livre, quando controlo a minha vida, sou senhor da minha própria vontade, sujeito das minhas escolhas e do modo de vida que quero levar, não sou instrumento ou não estou submetido à vontade de outrem, permitindo, assim, o autogoverno pessoal, na esfera privada, e coletivo, na esfera pública.

O problema dessa concepção positiva de liberdade consiste, segundo Berlin, na distinção de dois “eus”, com os quais tal concepção opera: um dominante e racional, que se identifica com a natureza superior do sujeito com o ideal superior de autonomia. “Este eu dominante é identificado de diversas maneiras: com a razão, com uma ‘natureza superior’, com um eu calculador e que visa aquilo que o satisfará, a longo prazo, com um eu ‘real’, ‘ideal’ ou autônomo, ou com um eu ‘supremo’.” (BERLIN, 1998, p. 256). O outro eu é inferior, movido por desejos irracionais, que buscam o prazer imediato: “[…] o eu ‘empírico’ ou ‘heterônomo’, varrido pelas rajadas de desejos e de paixões, que necessita ser rigidamente disciplinado se quiser ascender aos cumes da sua natureza ‘real’.” (BERLIN, 1998, p. 256). Ora, como o indivíduo é impotente para buscar o seu bem na realização do seu eu superior, entidades mais elevadas (a Igreja, o Estado, o partido, a razão) surgem de forma vicária como o eu verdadeiro e autêntico, e se impõem como vontade coletiva suprema, à qual o indivíduo deve se identificar.

Segundo Berlin, a liberdade positiva é retrógrada e potencialmente despótica, porque supõe uma noção potencialmente disciplinadora de uma vontade não adequada à concepção do bem comum, definido por um “eu” superior e transcendente, ao qual os indivíduos devem submeter-se por meio de mecanismos de integração das vontades particulares.

A concepção “positiva” de liberdade enquanto autodomínio, com a sua sugestão de um indivíduo dividido contra ele próprio, tem-se prestado de fato, por razões de história, de doutrina e de prática, a uma mais fácil cisão da personalidade em duas: o controlador dominante e transcendente e o feixe de desejos e de paixões empíricas, que tem de ser disciplinado e submetido. (BERLIN, 1998, p. 258).

Na análise de Berlin, os dois conceitos de liberdade envolvem concepções distintas sobre os fins e o sentido da vida, com evidentes consequências políticas. Sem negar o valor da liberdade positiva, a concepção negativa impõe-se de forma incontornável, uma vez que ela pressupõe o pluralismo ético, amparando a diversidade de concepções sobre a ideia de melhor vida e diferentes estilos de comportamento que os indivíduos podem, livremente, escolher. Numa sociedade aberta e democrática, na qual vários modos de vida competem, a concepção negativa de liberdade é fundamental. Pela ausência de coerções indevidas, o homem permanece livre do controle na esfera social e livre das imposições que a sociedade, mesmo que majoritariamente, julga ser o bem a ser seguido pelos indivíduos.4

Contudo, essas posições não são definitivas, na teoria liberal da liberdade negativa, pois sofreram alterações. Gerald MacCallum Junior, no seu conhecido ensaio Liberdade Negativa e Positiva, amplia a concepção dualista de Berlin. Afirma que a liberdade é uma relação triádica, e que controvérsias acerca do seu sentido devem envolver a disputa sobre o adequado arranjo de três variáveis: x, y z.

Sempre que a liberdade de algum agente ou agentes está em questão, ela é sempre liberdade de algum constrangimento ou restrição, interferência ou barreira para fazer, não fazer, tornar-se ou não tornar-se algo. Tal liberdade é, portanto, sempre de alguém (um agente ou agentes), diante de algo,para fazer, não fazer, tornar-se ou não tornar-se algo; é sempre uma relação triádica. Tomando o formato ‘é (ou não é) livre de para fazer (ou não fazer, tornar-se ou não tornar-se) z‘; indica os agentes, abrange “condições impeditivas” como constrangimentos, restrições, interferências e barreiras, e enumera ações e condições de caráter ou circunstância. (MACCALLUM, 1991, p102).

Essa forma de entender é seguida por outros teóricos do liberalismo político. Rawls, por exemplo, enfatiza que a liberdade deve ser explicada na referência a três aspectos: os agentes que são livres, as restrições ou limitações das quais eles estão livres, e aquilo para o qual eles são livres para fazer ou não fazer. “A descrição geral de uma liberdade, então, assume a seguinte forma: esta ou aquela pessoa (ou pessoas) está (ou não está) livre desta ou daquela restrição (ou conjunto de restrições) para fazer (ou não fazer) isto ou aquilo.” (RAWLS, 1997, p. 219) Trata-se, como se vê, de um conceito amplo e formal de liberdade negativa. Esta pode ser especificada como um conjunto de liberdades, chamadas de básicas (“bens primários”), “definidas por direitos e deveres institucionais que dão aos cidadãos o direito de agir como desejarem e que impedem os outros de interferir.” (RAWLS, 2000, p. 176)

Com o objetivo de garantir a liberdade individual e o pluralismo como resultado das diversas formas de vida, a filosofia política do liberalismo adota um paradigma jurídico que estabelece procedimentos equitativos e imparciais na constituição e na defesa daquilo que é adequado (justo) para a sociedade. Essa é a finalidade da política, pois o sistema dos direitos e dos deveres preexiste à instituição da sociedade politicamente organizada sob a forma estatal. Se os homens são livres, e se a liberdade individual constitui o valor superior, qual é o papel do Estado? Na medida em que os indivíduos não são suficientemente escrupulosos para observar o princípio da liberdade (negativa), o liberalismo acata a ideia de que o Estado, por meio do direito positivo, deve torná-la peremptória e garantir o respeito recíproco dos indivíduos à liberdade, a qual pode ser limitada pelo poder político, mas tão somente no interesse da própria liberdade.

O poder governamental deve estabelecer limites legítimos para a ação dos outros e instituir regras que regulam a liberdade e protegem, por conseguinte, a esfera privada das condutas individuais. Um dos deveres básicos do Estado é impedir a invasão dos direitos produzida pela ingerência indevida dos cidadãos e, sobretudo, do próprio poder político. Um dever que ele cumpre pela imposição da força coercitiva da lei sobre todos igualmente.

A função do Estado é a de assegurar, mediante princípios de justiça, a igualdade formal dos cidadãos, sem esposar nenhuma concepção particular de bem. Ele deve ser neutro em relação às diversas concepções de bem e de vida boa que os indivíduos revelam e realizam, no uso das suas liberdades. Assim, a noção de justiça deve ser entendida como o estabelecimento de regras equitativas que regulam formas de procedimento visando ao respeito dos direitos individuais, constituindo o meio mais adequado para assegurar a liberdade individual, a pluralidade das opiniões, a diversidade dos modos de vida, a propriedade privada e a concorrência econômica. Em razão do multiculturalismo ético, cultural e religioso, as leis tornam-se neutras, e o Estado surge como instância imparcial para arbitrar conflitos que resultam de interesses divergentes. O direito e a liberdade individual são os únicos “bens” possíveis que podem ser partilhados por todos, e que, por isso, podem ser considerados universais.

II. A concepção republicana de liberdade como não-dominação

O liberalismo firmou-se como filosofia que ofereceu uma resposta _ e que se tornou hegemônica _ à grande questão da política sobre o que é liberdade e como uma sociedade deve tornar-se livre. O chamado Estado de Direito liberal foi concebido como uma instituição que se autorregula por princípios constitucionais, os quais visam à organização social, econômica e política de uma sociedade, e cujo escopo principal é a proteção dos direitos individuais, sobretudo as liberdades. O seu poder e seu âmbito de ação encontram-se limitados por esses princípios. Contudo, esse Estado

[…] enfrentou, no decorrer do seu desenvolvimento, uma série de contradições internas que o destruíram, de certa maneira, por dentro, ou pelo menos, o esvaziaram do seu sentido primeiro […] Ao invés de ser considerado e praticado como um ideal regulador, o Estado de direito se transforma em sistema fechado, que mobiliza a verticalidade das normas jurídicas, sua organização piramidal, para dar origem a uma nova concepção de poder, a um poder unitário e hierárquico, em detrimento de todas as formas de autonomia. (ABENSOUR, 1998, p. 128).

O modelo liberal da liberdade negativa acaba deslocando a compreensão normativa das ações humanas da política e da ética para o direito. Essa inflexão jurídica determina o regramento da vida e das relações sociais de acordo com os limites da liberdade individual, na tentativa de proteger os direitos, especialmente as liberdades individuais, e definir o alcance do poder político. Uma vez que o ponto de partida é a liberdade individual, a finalidade da vida não é mais a fruição política da cidadania na dimensão pública, mas a autonomia dos sujeitos na esfera privada da sociedade civil. O inevitável processo de “despolitização” da sociedade e dos conflitos sociais é decorrência da ênfase da política atrelada à garantia da pessoa com privilégios e imunidades.

Contudo, estudiosos da filosofia política moderna tentaram mostrar que ela não se esgota na forma hegemônica de se pensar a política segundo o paradigma jurídico do liberalismo. O resgate da tradição do republicanismo, e com ela a adoção de outra concepção da liberdade, significou a possibilidade de compreendê-la como fenômeno político face à insatisfação e insuficiências do modelo jurídico-liberal.5 Diante do conceito de liberdade (negativa) e do viés jurídico da sua compreensão, na teoria política do liberalismo, deficiências foram apontadas quanto a esse conceito, mormente aquelas que merecem respostas vis-à-vis às exigências de autonomia das sociedades democráticas modernas.

A ascensão do pensamento político do contratualismo com o conceito hegemônico dos direitos individuais acabou eclipsando a antiga tradição republicana que remonta ao classicismo político greco-latino. Skinner procurou mostrar que a teoria dos direitos individuais, na esteira do hobbesianismo, transformou a liberdade negativa em um direito natural-moral. O republicanismo representa um desafio a essa tese, redefinindo os objetivos da concepção liberal da liberdade negativa. Propõe uma retificação conceitual na linha da teoria maquiaveliana da liberdade, sem recorrer à estratégia dos direitos (subjetivos) naturais, os quais se tornaram preponderantes e penetraram a teoria política do liberalismo clássico.

A filosofia política do republicanismo pretende corrigir a noção liberal de liberdade, a partir de uma análise mais abrangente que permite compreendê-la num sentido mais apropriado diante do fato concreto do poder e do domínio de indivíduos ou grupos, na sociedade. As análises de Pettit são esclarecedoras na interpretação da liberdade nessa linha ou para introduzir a importância da ideia de dominação, na esfera conceitual da liberdade. Ao criticar as limitações da interpretação (liberal) da liberdade negativa como ausência de interferência, esse autor se apega a uma concepção mais abrangente de liberdade vinculada à tradição republicana: a tese da liberdade como liberação de qualquer dependência ou relação de domínio de um agente (pessoas ou instituições) que tem a capacidade para interferir em bases arbitrárias nas escolhas, na vida ou nos afazeres de uma outra pessoa que não concorda com essa interferência.6

Um ato é arbitrário quando ele está sob o controle do arbitrium de alguém, e cujo poder de uso afeta ou pode afetar uma outra pessoa que se sente coagida ou ameaçada nas suas escolhas, nos seus interesses ou no livre desenvolvimento de suas capacidades diante do poder (real ou potencial) abusivo de interferência de outrem. Portanto, existe um poder de dominação na medida em que três condições estão presentes: alguém “1. tem capacidade para interferir; 2. de modo arbitrário; 3. em determinadas escolhas que o outro está na posição de realizar.” (PETTIT, 1997, p. 52).7

Pettit observa que,

[…] enquanto os liberais assimilam a liberdade à ausência de ingerência, os republicanos a assimilam ao fato de não estarem submetidos à ingerência do outro segundo a sua vontade, ao fato de estar colocado ao abrigo de tal ingerência. A liberdade de uma pessoa, nesse sentido, equivale ao fato de ela não estar submetida ao poder que o outro tem de prejudicá-la, ao fato de não ser dominada pelo outro. A liberdade concebida como ausência de dominação _ como segurança contra a ingerência arbitrária _ é um ideal muito diferente da liberdade concebida como simples não-ingerência. A dominação é o tipo de relação que une, por exemplo, o senhor e o escravo ou o senhor e o empregado doméstico. […] A não-dominação e a não-ingerência representam ideais muito diferentes. A diferença entre esses ideais manifesta-se pelo fato de que a dominação é possível sem ingerência, e a ingerência sem dominação. (PETTIT, 2003, p. 57).

A dominação significa viver à mercê de outrem e experimentar tal experiência como dependência real ou potencial, em virtude do grau de vulnerabilidade que alguém tem em relação a outrem, por estar submetido ao seu poder. Um agente, pessoal ou coletivo, domina outro, se ele tem um poder arbitrário (real ou potencial) de interferência, e uma pessoa só é livre quando inexiste esse poder. “Ser não-livre é estar sujeito ao domínio arbitrário: sujeito à vontade potencialmente caprichosa ou ao julgamento potencialmente idiossincrático de outro. Liberdade envolve emancipação de toda subordinação, liberação de toda dependência.” (PETTIT, 1997, p. 5).8

O autor assevera que a concepção republicana da liberdade como não-dominação constitui uma terceira abordagem, diferente da concepção positiva (do autogoverno tanto pessoal como político) e negativa (ausência de interferências ou coerção). No que diz respeito à concepção negativa, não concorda com a tese de que a liberdade consiste, simplesmente, na ausência de interferência, pois pode haver dominação _ e, portanto, ausência de liberdade _ sem a ocorrência de uma efetiva interferência. Dominação e interferência são fenômenos diferentes. Se a interferência for entendida no sentido amplo, que inclui não apenas a coerção física, mas também a coação da vontade, o castigo ou a ameaça do castigo e outras formas de manipulação, pode haver dominação sem interferência. A dependência à vontade arbitrária de um ou mais indivíduos não consiste apenas na opressão efetiva ou real, mas pode ser também possível, virtual ou mesmo provável, quando o poder de opressão de outrem é de tal monta inibidor que acaba retirando a autonomia em virtude do grau de dependência e de fragilidade de quem está à mercê do poder do mais forte. É o caso do escravo que, mesmo não sofrendo a interferência do seu senhor, é por este dominado. Embora não havendo uma interferência real, a dominação existe, em função do poder que algumas pessoas têm de, a qualquer momento, intervir.

Os recursos, em virtude dos quais uma pessoa pode ter poder sobre outra, são extremamente variados: compreendem os da força física, a vantagem tecnológica, a influência financeira, a autoridade política, os contatos sociais, o prestígio na comunidade, o acesso a informações, a posição ideológica, a legitimação cultural, e outros. (PETTIT, 1997, p. 59).

Pettit descreve algumas situações nas quais o indivíduo pode sofrer o domínio de outrem, por conta de uma relação de dependência. Casos concretos desse poder amparam as ações de maridos, executivos, patrões, credores, agentes governamentais, burocratas etc., que, nos seus âmbitos de suas prerrogativas, exercem ou podem exercer um domínio arbitrário sobre as outras pessoas com as quais se relacionam e que estão numa condição de fragilidade ou de dependência afetiva, psicológica, financeira, ainda que essas ações não configurem uma ilegalidade. Por exemplo: o devedor que teme possíveis chantagens do credor, ficando à sua mercê; o empregado que necessita do emprego e silencia-se, quanto aos seus direitos diante do empregador; a mulher que se priva da sua independência, para não desagradar ao marido, com medo de ser rejeitada etc. Em todas essas situações, há ausência de interferências, de coerção ou de ingerências nas escolhas do devedor, do empregado e da mulher. Porém, não há liberdade, uma vez que prevalece uma evidente relação de dominação.9

Quanto à concepção positiva, Pettit salienta que ela é, também, por si só unilateral. Alguém pode ser senhor de si mesmo e, ainda assim, não ser livre naquelas situações nas quais há interferência (legítima) sem ocorrer, todavia, uma efetiva dominação. Por exemplo, quando a autoridade pública se imiscui na vida das pessoas, de modo a induzi-las a fazer escolhas por suas próprias decisões, mas sem afetar a “autonomia” delas, mesmo diante da interferência não dominadora da autoridade; ou quando alguém, sob legal obrigação, interfere nas escolhas de outrem, mas não de forma arbitrária. Em todas essas situações, pode haver perda de liberdade, por conta da interferência legítima ou ingerência legal de alguém _ via de regra do poder público _ a despeito de não ocorrer nenhuma dominação.

Afinal, a liberdade deixa de existir diante de atos de ingerência de alguém que não se abstém de interferir naquilo que julga necessário e oportuno agir. Em razão da autoridade supostamente legítima, o beneplácito de uma vontade senhora de si mesma é induzida a obedecer e, voluntariamente, cede a essa interferência. Nesse caso, para que a liberdade (positiva) possa ser plena, há necessidade de se garantir a ausência da interferência (liberdade negativa), mesmo diante de uma vontade que não foi violentada na sua autonomia, sob o artifício rousseauista de que a “[…] obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade.” (ROUSSEAU, 1978, p. 37).

Assim, a limitação da liberdade positiva consiste em não perceber que pode haver interferência sem dominação. Quanto à liberdade negativa do liberalismo, a qual afirma que somos livres na medida em que estamos livres de interferência, ou seja, quando se manifesta a ausência (negação) de impedimentos ou obstáculos que interditam a nossa ação, a liberdade política republicana sustenta que pode haver dominação sem interferência.

A liberdade, se tomada pela via unilateral da liberdade negativa da ausência de impedimentos, cristaliza-se na forma impeditiva do normativismo formal do direito. Se tomada pela via, também unilateral, do autogoverno da liberdade positiva, limita-se ao sujeito autorreferente, e se revela parcial, permitindo a interferência diante da “astúcia” do seu conceito, visto que ele gera a ilusão de que o sujeito é sempre livre, pois depende da sua vontade acatar a interferência sem perceber que, na verdade, a sua liberdade foi tolhida ou reprimida de forma sub-reptícia.

A liberdade republicana, por sua vez, necessita ser integralizada tanto pelo aspecto objetivo da ausência de impedimentos, quanto pelo aspecto subjetivo da autonomia da vontade. Com isso, ela deve atender, sobretudo, ao requisito da ausência objetiva de domínio ou de dependência. Assim, somos livres na medida em que não somos dependentes num duplo aspecto: na ausência de interferência e, de forma solidária, quando não se produz a dominação. Se o domínio inexiste, o indivíduo pode exercer a sua autonomia, mas esta só é plena se não há interferência ou impedimento.

A proposta retificadora de Pettit da liberdade como não-dominação consiste em entender que, enquanto autogoverno, ela precisa ser completada com a ausência de interferência e esta, com a presença do autogoverno. A liberdade

[…] é negativa na medida em que ela requer a ausência de dominação por outros, não necessariamente a presença do autogoverno […] A concepção é positiva na medida em que, pelo menos sob um aspecto, ela necessita algo mais do que a ausência de interferência; ela requer segurança contra a interferência, particularmente contra a interferência em bases arbitrárias. (PETTIT, 1997, p. 51).

A liberdade não consiste, pois, tão somente em realizar uma ação na ausência de impedimentos externos, impedimentos estes que são proibidos por lei. Mais que isso, ela consiste em realizar uma ação _ a que os indivíduos reconhecem que não têm o direito de criar obstáculos _ porque a lei impeditiva da interferência dos outros, que possibilita a livre efetividade dessa ação, emana da vontade comum e, sendo legítima, o seu poder não é dominador, mas compatível com aquilo que nós mais desejamos, quando vivemos em conjunto: a liberdade (autogoverno), o fato de o homem ser senhor do seu destino e dominar a fortuna.

III. Republicanismo ou liberalismo: uma escolha disjuntiva?

No confronto com a tese liberal da liberdade como ausência de impedimentos, ou da liberdade negativa entendida como o uso de uma área de ação própria à livre atividade do sujeito sem interferências de outrem _ indivíduo ou Estado _, a concepção republicana de liberdade tem uma relação de proximidade crítica. Se o ideal republicano de liberdade é a não-dominação, qual a diferença com a concepção liberal que argumenta, justamente, a não ingerência como elemento principal para eliminar a dominação? O que separa a compreensão da liberdade republicana da liberal? Mas os adeptos da liberdade positiva também enfatizam que uma vontade só é plenamente autônoma, se ela não se submeter a ingerências externas. Qual dessas concepções deve ser seguida pelas sociedades democráticas modernas?

Um modelo de liberdade mais adequado a essas sociedades não pode ser, no nosso entendimento, constituído em termos de escolha entre duas possibilidades _ liberalismo ou republicanismo _ porque os problemas e as deficiências dos modelos de liberdade, se considerados na sua identidade teórica, excluem possíveis formas de correção que diferentes teorias necessitam, caso elas sejam confrontadas. Isso significa dizer que nem o conceito liberal, nem o republicano, se considerados na unilateralidade das suas posições, são suficientes para dar conta da rica e complexa significação da categoria política da liberdade para uma sociedade democrática moderna.

Esse conceito deve ser compatível com as sociedades democráticas modernas marcadas pelo pluralismo de grupos divergentes e pela diversidade dos interesses individuais que buscam a proteção dos seus direitos; e, ao mesmo tempo, é suficientemente adequado para resistir às diversas formas de dominação que podem existir nessas mesmas sociedades, mesmo diante da garantia formal da liberdade na ótica do liberalismo. Tal perspectiva estimula o debate, no sentido de combinar o conceito republicano de liberdade como não-dominação com a ideia liberal da liberdade como ausência de interferência, de tal modo que a alternativa para resolver as deficiências, tanto de uma concepção quanto de outra, seria a conciliação de elementos positivos que ambas as concepções em disputa possuem? 10

Se essa sugestão é alvissareira, a reunião de elementos liberais e republicanos não tem a pretensão da mera conciliação das duas teorias. O propósito teórico do chamado republicanismo neorromano _ como o de Q. Skinner, M. Viroli, P. Pettit e J. Maynor e outros _ parece ser de outra ordem: mostrar que a teoria republicana da liberdade, por ser mais ampla, pode comportar e realizar de forma mais adequada a aspiração liberal à não-interferência. O que se discute é a possibilidade de que a tese republicana da liberdade como não-dominação possa servir de alternativa à noção liberal da liberdade negativa, ou, então, com ela ser compatível. Nesse caso, o que está em jogo são os termos e o alcance dessa compatibilidade. Por outras palavras, as teses republicanas, sobretudo a da liberdade como não-dominação, representam valores substantivos em si mesmos e devem substituir a filosofia política do liberalismo, ou elas são instrumentos para melhor realizar os ideais do liberalismo, sendo compatíveis com esses ideais?

Esses autores afirmam que a concepção liberal de liberdade negativa está, também, presente no republicanismo, particularmente em Maquiavel. Na opinião de Skinner,

[…] os autores neo-romanos aceitam plenamente que a extensão de sua liberdade como cidadão deveria ser medida pela extensão na qual você é ou não constrangido de agir à vontade na busca de seus fins escolhidos. Ou seja, eles não discordam do princípio liberal de que, como Bentham iria mais tarde formular, o conceito de liberdade “é um conceito meramente negativo” no sentido em que a sua presença é sempre assinalada pela ausência de algo e, especialmente, pela ausência de alguma medida de restrição ou constrangimento. (SKINNER, 1999, 70-71).

Na avaliação de Viroli, muitas das teses do liberalismo (de que a sociedade política deve proteger o indivíduo, de que os cidadãos devem participar da soberania para defender a sua liberdade, de que o Estado deve ter o seu poder limitado e controlado, entre outras) já estão presentes na tradição republicana, sobretudo em Maquiavel. Desse ponto de vista, o “liberalismo pode ser considerado um republicanismo empobrecido ou incoerente”, enquanto o “republicanismo é uma teoria liberal que é mais radical e consistente do que o liberalismo clássico.” (VIROLI, 2002,p. 61). Mas, ainda assim, ele não pode ser tomado como uma alternativa para o liberalismo.

O republicanismo _ observa Viroli _ sustenta que para realizar a liberdade política é preciso opor-se tanto à interferência e à coerção em sentido próprio, quanto à dependência, pela razão de que a condição de dependência é um constrangimento da vontade e, portanto, uma violação da liberdade. Isso significa que quem ama a verdadeira liberdade do indivíduo não pode não ser liberal, mas não pode ser apenas liberal. (BOBBIO; VIROLI, 2002, p. 33-34).

Pettit pretende estabelecer diferenças entre liberalismo e republicanismo, principalmente no que se refere à concepção de liberdade e à forma como as sociedades democráticas deveriam funcionar. Por isso, ambos dão respostas diferentes ao papel da lei e dos direitos, à dinâmica do processo eleitoral, à função da política do governo e ao valor da cidadania. O republicanismo trata de modo diverso a realização da vida política, cujo valor essencial é a liberdade. A tradição liberal acabou tornando-se indiferente à questão da dominação nas relações humanas que secretam diversas possibilidades de domínio. Com base no pressuposto de que os indivíduos devem ser livres para agirem como desejam agir, sem obstáculos à sua ação, as relações de poder entre as pessoas, e entre estas e as instituições sociais e políticas, são relaxadas em nome do cordão de segurança da liberdade negativa e dos direitos individuais que se coloca entre os indivíduos. “Esta relativa indiferença ao poder de dominação _ comenta Pettit _ fez do liberalismo tolerante nas relações em casa, no local de trabalho, no eleitorado, e em outros lugares, que o republicano deve denunciar como paradigmas de dominação e não-liberdade.” (PETTIT, 1997, p. 9).

Pettit, portanto, inclina-se para a posição daqueles que, como Skinner e Viroli, veem a liberdade republicana da não-dominação como um valor instrumental, e não um bem em si mesmo.Isto é, os fins propostos por uma sociedade liberal são realizados com mais eficácia, quando forem mediados pelos valores políticos do republicanismo: a liberdade, a cidadania participativa etc. Destarte, a adoção desses valores traz vantagens irrecusáveis para uma sociedade liberal que não precisa abandonar os direitos subjetivos e o conceito de liberdade negativa, pois esses princípios não são incompatíveis com a concepção republicana de liberdade.

IV. As condições para a realização da liberdade como não-dominação

Diante do estado da questão, qual posição é a mais razoável a ser tomada? Antes de tudo, é importante destacar que não se trata de escolher entre a alternativa liberal ou a republicana. A escolha disjuntiva implica a negação de aspectos essenciais que ambas defendem para a constituição do conceito de liberdade: seja o elemento liberal da liberdade negativa da ausência de interferência, seja o elemento republicano da não-dominação. Ora, são esses elementos que precisam ser preservados, se queremos realizar e garantir a liberdade individual como direito subjetivo, conquista irrenunciável da modernidade.

Mas, se esses elementos são importantes, não se trata igualmente da mera associação deles na tentativa de conciliar duas formas de liberdade. O que é decisivo é como e de que modo essas formas de liberdade permitem realizar, de maneira mais consistente e duradoura, o ideal de liberdade no sentido pleno. Somente assim é possível assegurar tanto a não-dominação como a ausência de interferência. Assim, sustentamos a tese _ próxima do chamado republicanismo neorromano _ de que a concepção de liberdade como não-dominação pode perfeitamente realizar o conceito liberal da liberdade negativa com mais eficácia e propriedade e, ao mesmo tempo, garantir a efetiva autonomia dos sujeitos, diante dos diversos mecanismos de dominação. Contudo, isso é possível _ e este adendo é de fundamental importância _ porque essa tese envolve determinados pressupostos, implicações ou, até mesmo, condições de possibilidade, as quais não só efetivam a dimensão subjetiva da liberdade, como também estimulam a criação de elementos objetivos políticos e éticos adequados, que garantem a ausência de ingerências indevidas, e que são formalmente assegurados pelo direito. Tais pressupostos ou condições são três e podem ser formulados nas seguintes proposições:

A) A primeira condição afirma que a vida do homem se realiza e se desenvolve na dimensão social do viver político do ser humano, e que a liberdade, nessas condições, só se constitui e se afirma mediante relações intersubjetivas de mútuo reconhecimento.

A diferença entre a tese republicana e a liberal consiste no modo de fundamentação da liberdade. O republicanismo afirma que a liberdade é social e não um dado da natureza humana, seja esta entendida como fenômeno antropológico, seja compreendida como um fato da razão, e que encontra na estrutura dos direitos subjetivos sua formulação normativa. Para o liberalismo, a liberdade tem uma justificação pré-política, pois está ancorada em princípios normativos de uma racionalidade autorreferente, que autoriza a formulação dos direitos subjetivos, naturais ou positivos. Ela vincula-se, destarte, a uma visão “juridicista” da liberdade, fundamentada no pressuposto de uma sociabilidade caracterizada pelo individualismo de sujeitos atomizados, os quais ostentam de per si o direito subjetivo da liberdade. Este, por sua vez, só tem validade se configurar uma situação de violação por meio de atos de interferência não legítimos de outrem.

Já o republicanismo sustenta a tese de que a liberdade depende dascondições sociais, e tem por base a ideia de que as aspirações à autonomia e as realizações de uma vida independente são concebíveis no diálogo com os outros pela compreensão comum de práticas sociais que amparam o viver junto, e que são reconhecidas como tais. Uma consequência correlata da dimensão social do viver político do homem se constitui na presença de um campo de reciprocidade de relações intersubjetivas de mútuo reconhecimento. E são essas relações que possibilitam que os homens possam, na dimensão do seu viver social, estabelecer e concordar com uma concepção racional de um bem comum que, nas sociedades modernas, consiste no reconhecimento social da legitimidade do direito, da igualdade e da liberdade de todos.

A liberdade só existe onde os outros estão presentes, e as relações entre os indivíduos são institucionalizadas, de maneira a tornar possível a coexistência dos sujeitos que se reconhecem livres de relações de dominação. Vivemos com os outros que têm a obrigação de respeitar a nossa ação e, reciprocamente, cada um de nós reconhece que deve agir de forma semelhante. O republicanismo pensa a liberdade na presença dos outros e com os outros. Somente assim é possível efetivar a independência recíproca dos sujeitos, porque estes têm a consciência do dever de abstenção, face ao reconhecimento da legitimidade dos direitos da outra pessoa.

A liberdade não pode ser vista apenas no seu aspecto restritivo e limitador, como mera escolha de opções ou alternativas que se colocam diante do sujeito, mas, sobretudo, na dinâmica do reconhecimento que opera como elemento constituinte da liberdade. A ação de um sujeito livre deve ser explicada como o resultado de uma pessoa que é reconhecida prioritariamente como livre no seu status e na sua capacidade de fazer escolhas. Há necessidade, portanto, do reconhecimento público de que todos, como cidadãos, dispõem da liberdade de se opor à ação dos outros e às tentativas de dominação por parte de terceiros. Nesse sentido, a própria liberdade, embora individual, está atrelada à presença constitutiva e positiva de outrem numa relação de reciprocidade, já que a ausência de arbítrio consiste no reconhecimento da liberdade do outro.11

B) Essa primeira condição vincula-se a outras duas. A segunda diz respeito à proposição de que a comunidade política necessita ser constituída pelo autogoverno dos cidadãos. São eles que criam leis para efetivar e garantir a liberdade, visto que se impõe como consequência do reconhecimento público de que todos são cidadãos, e dispõem da liberdade de se opor à ação dos outros e às tentativas de dominação por parte de terceiros. Tal constatação significa dizer que a liberdade como não-dominação deve ser vista sob um regime jurídico adequado de leis que criam e garantem a liberdade de todos. Ser livre significa estar protegido pela lei numa forma da vida social, na qual o reconhecimento da liberdade é possível, porque todos pertencem a uma sociedade cujo valor social pressupõe a proteção das ações dos sujeitos que reconhecem a legitimidade dessas ações, e se abstêm de interferências.

A liberdade política do republicanismo implica, pois, a ação de criar uma ordem ética e cívica objetiva que, instaurando a igualdade e a submissão de todos ao governo de leis de um regime constitucional, torna-se instrumento de proteção contra o infortúnio, a dependência e a servidão. Uma característica essencial da liberdade política é o autogoverno, possível nas repúblicas como forma de poder político (o Estado), sob o qual uma comunidade pode obter grandeza e garantir aos seus cidadãos suas liberdades individuais. Na teoria republicana, a liberdade não está circunscrita ao mero atributo da natureza humana, mas como um modo de ação que essa natureza propicia, quando ela é estimulada pelas instituições políticas. Mediante essas instituições é que se tem uma garantia efetiva contra a interferência dos outros, e cuja eficácia é produzida por um sistema social e político republicano igualitário, o qual garante leis impeditivas à ação abusiva e dominadora de outrem.

Fora da ordem legal própria às sociedades constituídas, existe apenas um jogo de vontades que procuram dominar. No entanto, o conflito não deve ser expurgado das práticas políticas da sociedade, mas regulado pela atuação de forças democráticas hegemônicas. Tais forças defendem a liberdade como espaço político vital para a democracia, afastando a tendência sempre presente da dominação. Trata-se, portanto, de uma forte compreensão do espaço público como esfera decisiva para a defesa e a ampliação da liberdade, para cuja proteção é requerido um Estado democrático de obediência à lei.12

C) A terceira condição, de ordem subjetiva, refere-se à vigilância do cidadão pela atuação política da cidadania como atribuição de virtudes cívicas. Para que isso seja efetivamente viável, há necessidade do recurso à ideia forte de um bem comum que congrega os indivíduos em torno do ideal político da cidadania virtuosa. Por meio desse elemento, pode-se viabilizar e sustentar o ideal de liberdade como não-dominação e assegurar com eficácia o elemento liberal da liberdade negativa como ausência de impedimentos. Se a questão da liberdade for analisada pelo lado da concepção liberal, por si só, ela não se sustenta diante da necessidade de realização dos valores democráticos no espaço público. Somente leis justas e legítimas de um Estado republicano garantem a existência das liberdades individuais e asseguram os direitos subjetivos. E esses direitos encontram sua efetividade apenas com a vigilância ativa do dever cívico de cidadãos virtuosos, os quais impedem que as leis e as instituições sejam o resultado da ação dominadora, principalmente do poder econômico, que busca perpetuar relações de dominação.

Os Estados livres, como as pessoas, são definidos pela capacidade de autogoverno realizada no espaço público, no qual os cidadãos se qualificam para a vida política como indivíduos dotados de virtudes cívicas. O mote republicano de que o preço da liberdade é a eterna vigilância exige uma política virtuosa que os indivíduos, como governantes e governados, desenvolvem na coletividade, no sentido de exercer ações e de perseguir fins em prol do bem público. O republicanismo depende de uma concepção forte de cidadania, pela qual o bem comum se forma para além dos interesses individuais e do valor instrumental do cidadão como mero portador de direitos. Se a comunidade política for compreendida no propósito republicano _ definida por Cícero como res publica: coisa que pertence ao povo (res publica, res populi) _ a cidadania possui um conteúdo mais amplo e um sentido mais forte do que a sua compreensão liberal como simples intitulação de direitos. As boas leis de um Estado necessitam de hábitos de civilidade (como a adesão, o respeito e a confiança) e de valores públicos que devem ser interiorizados na consciência do cidadão por intermédio de ações educacionais adequadas. Essa identificação com a comunidade política republicana é o que se entende por patriotismo.

Conclusão

O republicanismo visa, portanto, a denunciar o paradoxo de que a lógica da vida política liberal pode engendrar uma situação não desejada pelos próprios ideais do liberalismo: a “des-politização” da liberdade e da cidadania acaba levando a uma ameaça da liberdade e da democracia _ como já previra Tocqueville _, criando um novo despotismo, que comprometerá as próprias liberdades individuais.

Os valores do moderno republicanismo, sintetizados na ideia da liberdade como não-dominação, são de tal forma valiosos para uma sociedade democrática que a sua adoção acaba por ter força institucional profundamente diferente dos valores instrumentais que o liberalismo vem praticando. A adoção e a prática da liberdade como não-dominação fazem dela quase um bem em si mesmo, com força formadora de certos ideais e de instituições que podem sustentá-la, e cuja ausência torna a política liberal pobre, na promoção dos seus próprios fins, e demasiado abstratos para estimular a intermediação de meios necessários para a efetiva realização desses mesmos fins.

Uma das formas de superar a oposição entre o individualismo _ com ênfase nas teorias da justiça _ e o comunitarismo _ com destaque nas teses da prevalência de um bem socialmente compartilhado _ consiste na elaboração de uma teoria política que tenha condições de aliar o ideal moderno das liberdades individuais e dos direitos subjetivos do homem privado com as qualidades cívicas dos valores políticos e morais da comunidade, constituídas na objetividade do espaço público, e que remontam a uma longa tradição do pensamento político, com raízes na Grécia clássica.

Quando a sociedade adota o ideal ético-político da não-dominação, as consequências serão diferentes daquelas que são produzidas pela escolha do modelo liberal da liberdade negativa. Ela terá uma vida social e política mais razoável e decente, sem deixar de realizar os ideais de uma sociedade liberal moderna e democrática. A liberdade como não-dominação pretende corrigir o juridicismo daquele modelo e assegurar, de maneira mais consistente e democrática, os valores liberais, sobretudo os direitos individuais e o pluralismo. Mas isso somente é possível mediante a realização de determinados pressupostos de ordem intersubjetiva, objetiva e subjetiva.

O republicanismo pretende dar conta do caráter tripartido da liberdade e da conexão dessas três faces para a constituição de uma teoria abrangente da liberdade como não-dominação. Primeiramente, isso é possível pela articulação da dimensão intersubjetiva da liberdade, por meio da qual a liberdade supera o seu solo autorreferencial pela dinâmica do mútuo reconhecimento. Em segundo lugar, pelo lado da criação de leis e instituições políticas que, mediante o autogoverno, objetivam a liberdade e garantem a não-dominação. Em terceiro lugar, essa ordem política deve ser fomentada por cidadãos que, na qualidade de indivíduos voltados para o interesse coletivo, atuam como agentes cívicos para proteger e ampliar essa liberdade e assegurar a autonomia política da comunidade. São essas três faces que, interligadas, sustentam não só a saúde da moderna democracia, bem como o direito subjetivo à liberdade individual.

A CRISE NA EDUCAÇÃO – Hannah Arendt

A CRISE NA EDUCAÇÃO – Hannah Arendt

Hannah Arendt

I

 

        A crise geral que acometeu o mundo moderno em toda parte e em quase toda esfera da vida se manifesta diversamente em cada país, envolvendo áreas e assumindo formas diversas. Na América, um de seus aspectos mais característicos e sugestivos é a crise periódica na educação, que se tornou, no transcurso da última década pelo menos, um problema político de primeira grandeza, aparecendo quase diariamente no noticiário jornalístico. Certamente não é preciso grande imaginação para detectar os perigos de um declí- [fim da p. 221] nio sempre crescente nos padrões elementares na totalidade do sistema escolar, e a seriedade do problema tem sido sublinhada apropriadamente pelos inúmeros esforços baldados das autoridades educacionais para deter a maré. Apesar disso, se compararmos essa crise na educação com as experiências políticas de outros países no século XX, com a agitação revolucionária que se sucedeu à Primeira Guerra Mundial, com os campos de concentração e de extermínio, ou mesmo com o profundo mal-estar que, não obstante as aparências contrárias de propriedade, se espalhou por toda a Europa a partir do término da Segunda Guerra Mundial, é um tanto difícil dar a uma crise na educação a seriedade devida. É de fato tentador considerá-la como um fenômeno local e sem conexão com as questões principais do século, pelo qual se deveriam responsabilizar determinadas peculiaridades da vida nos Estados Unidos que não encontrariam provavelmente contrapartida nas demais partes do mundo.

        Se isso fosse verdadeiro contudo a crise em nosso sistema escolar não se teria tornado um problema político e as autoridades educacionais não teriam sido incapazes de lidar com ela a tempo. Certamente, há aqui mais que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não sabe ler. Além disso, há sempre a tentação de crer que estamos tratando de problemas específicos confinados a fronteiras históricas e nacionais, importantes somente para os imediatamente afetados. É justamente essa crença que se tem demonstrado invariavelmente falsa em nossa época: pode-se admitir como uma regra geral neste século que qualquer coisa que seja possível em um país pode, em futuro previsível, ser igualmente possível em praticamente qualquer outro país.

        À parte essas razões gerais que fariam parecer aconselhável, ao leigo, dar atenção a distúrbios em áreas acerca das quais, em sentido especializado, ele pode nada saber (e esse é, evidentemente, o meu caso ao tratar de uma crise na educação, posto que não sou educadora profissional), há outra razão ainda mais convincente para que ele se preocupe com uma situação problemática na qual ele não está imediatamente [fim da p. 222] envolvido. É a oportunidade, proporcionada pelo próprio fato da crise – que dilacera fachadas e oblitera preconceitos -, de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu, e a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo. O desaparecimento de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que originariamente elas constituíam respostas a questões. Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão.

        Por mais claramente que um problema geral possa se apresentar em uma crise, ainda assim é impossível chegar a isolar completamente o elemento universal das circunstâncias específicas em que ele aparece. Embora a crise na educação possa afetar todo o mundo, é significativo o fato de encontrarmos sua forma mais extrema na América, e a razão é que, talvez, apenas na América uma crise na educação poderia se tornar realmente um fator na política. Na América, indiscutivelmente a educação desempenha um papel diferente e incomparavelmente mais importante politicamente do que em outros países. Tecnicamente, é claro, a explicação reside no fato de que a América sempre foi uma terra de imigrantes; como é óbvio, a fusão extremamente difícil dos grupos étnicos mais diversos – nunca completamente lograda, mas superando continuamente as expectativas – só pode ser cumprida mediante a instrução, educação e americanização dos filhos de imigrantes. Como para a maior parte dessas crianças o inglês não é a língua natal, mas tem que ser aprendida na escola, esta obviamente deve assumir funções que, em uma nação-estado, seriam desempenhadas normalmente no lar.

        Contudo, o mais decisivo para, nossas considerações é o papel que a imigração contínua desempenha [fim da p. 223] na consciência política e na estrutura psíquica do país. A América não é simplesmente um país colonial carecendo de imigrantes para povoar a terra, embora independa deles em sua estrutura política. Para a América o fator determinante sempre foi o lema impresso em toda nota de dólar – Novus Ordo Seclorum, Uma Nova Ordem do Mundo. Os imigrantes, os recém-chegados, são para o país uma garantia de que isto representa a nova ordem. O significado dessa nova ordem, dessa fundação de um novo mundo contra o antigo, foi e é a eliminação da pobreza e da opressão. Mas ao mesmo tempo, sua grandeza consiste no fato de que, desde o início, essa nova ordem não se desligou do mundo exterior – como costumava suceder alhures na fundação de utopias – para confrontar-se com um modelo perfeito, e tampouco foi seu propósito impor pretensões imperiais ou ser pregada como um evangelho a outros. Em vez disso, sua relação com o mundo exterior caracterizou-se desde o início pelo fato de esta república, que planejava abolir a pobreza e a escravidão ter dado boas-vindas a todos os pobres e escravizados do mundo. Nas palavras pronunciadas por John Adams em 1765 – isto é, antes da Declaração da Independência – “Sempre considerei a colonização da América como a abertura de um grandioso desígnio da providência para a iluminação e emancipação da parte escravizada do gênero humano sobre toda a terra”. Esse foi o intento ou lei básica em conformidade com qual a América começou sua existência histórica e política.

        O entusiasmo extraordinário pelo que é novo, exibido em quase todos os aspectos da vida diária americana, e a concomitante confiança em uma “perfectibilidade ilimitada” – observada por Tocqueville como o credo do “homem sem instrução” comum, e que como tal precede de quase cem anos o desenvolvimento em outros países do Ocidente -, presumivelmente resultariam de qualquer maneira em uma atenção maior e em maior importância dadas aos recém-chegados por nascimento, isto é, as crianças, as quais, ao terem ultrapassado a infância e estarem prontas para ingressar na comunidade dos adultos como pessoas jovens, eram [fim da p. 224] [o que] os gregos chamavam simplesmente ói neói, os novos. Há o fato adicional, contudo, e que se tornou decisivo para o significado da educação, de que esse pathos do novo, embora consideravelmente anterior ao século XVIII, somente se desenvolveu conceitual e politicamente naquele século. Derivou-se dessa fonte, a princípio, um ideal educacional, impregnado de Rousseau e de fato diretamente influenciado por Rousseau, no qual a educação tornou-se um instrumento da política, e a própria atividade política foi concebida como uma forma de educação.

        O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, a partir dos tempos antigos, mostra o quanto parece natural iniciar um novo mundo com aqueles que são por nascimento e por natureza novos. No que toca à política, isso implica obviamente um grave equívoco: ao invés de juntar-se aos seus iguais, assumindo o esforço de persuasão e correndo o risco do fracasso, há a intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto, e a tentativa de produzir o novo como um fait accompli, isto é, como se o novo já existisse. Por esse motivo na Europa, a crença de que se deve começar das crianças se se quer produzir novas condições permaneceu sendo principalmente o monopólio dos movimentos revolucionários de feitio tirânico que, ao chegarem ao poder, subtraem as crianças a seus pais e simplesmente as doutrinam. A educação não pode desempenhar papel nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados. Quem quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade, política. Como não se pode educar adultos a palavra “educação” soa mal em política; o que há é um simulacro de educação, enquanto o objetivo real e a coerção sem o uso da força. Quem desejar seriamente criar uma nova ordem política mediante a educação, isto é, nem através de força e coação, nem através da persuasão, se verá obrigado à pavorosa conclusão platônica: o banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado a ser fundado. Mas mesmo às crianças que se quer educar para que sejam cidadãos de um amanhã utópico é negado, de fato, seu próprio [fim da p. 225] papel futuro no organismo político, pois, do ponto de vista dos mais novos o que quer que o mundo adulto possa propor de novo é necessariamente mais velho do que eles mesmos. Pertence a própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo.

        Tudo isso de modo algum ocorre na América, e é exatamente esse fato que torna tão difícil julgar aqui corretamente esses problemas. O papel político que a educação efetivamente representa em uma terra de imigrantes, o fato de que as escolas não apenas servem para americanizar as crianças mas afetam também a seus pais, e de que aqui as pessoas são de fato ajudadas a se desfazerem de um mundo antigo e a entrar em um novo mundo, tudo isso encoraja a ilusão de que um mundo novo está sendo construído mediante a educação das crianças.rÉ claro que a verdadeira situação absolutamente não é esta. O mundo no qual são introduzidas as crianças, mesmo na América, é um mundo velho, isto é, um mundo preexistente, construído pelos vivos e pelos mortos, e só é novo para os que acabaram de penetrar nele pela imigração. Aqui, porém, a ilusão é mais forte do que a realidade, pois brota diretamente de uma experiência americana básica, qual seja, a de que é possível fundar uma nova ordem, e o que é mais, fundá-la com plena consciência de um continuum histórico, pois a frase “Novo Mundo” retira seu significado de Velho Mundo, que, embora admirável por outros motivos, foi rejeitado por não poder encontrar nenhuma solução para a pobreza e para a opressão.

        Com respeito à própria educação, a ilusão emergente do pathos do novo produziu suas conseqüências mais sérias apenas em nosso próprio século. Antes de mais nada, possibilitou àquele complexo de modernas teorias educacionais originárias da Europa Central e que consistem de uma impressionante miscelânea de bom senso e absurdo levar a cabo, sob a divisa da [fim da p. 226] educação progressista, uma radical revolução em todo o sistema educacional. Aquilo que na Europa permanecia sendo um experimento, testado aqui e ali em determinadas escolas e em instituições educacionais isoladas e estendendo depois gradualmente sua influência a alguns bairros, na América, há cerca de vinte e cinco anos atrás, derrubou completamente, como que de um dia para outro, todas as tradições e métodos estabelecidos de ensino e de aprendizagem. Não entrarei em detalhes, e deixo de fora as escolas particulares e, sobretudo, o sistema escolar paroquial católico-romano. O fato importante é que, por causa de determinadas teorias, boas ou más, todas as regras do juízo humano normal foram postas de parte. Um procedimento como esse possui sempre grande e perniciosa importância, sobretudo em um país que confia em tão larga escala no bom senso em sua vida política. Sempre que, em questões políticas, o são juízo humano fracassa ou renuncia à tentativa de fornecer respostas, nos deparamos com uma crise; pois essa espécie de juízo é, na realidade, aquele senso comum em virtude do qual nós e nossos cinco sentidos individuais estão adaptados a um único mundo comum a todos nós, e com a ajuda do qual nele nos movemos. O desaparecimento do senso comum nos dias atuais é o sinal mais seguro da crise atual. Em toda crise, é destruída uma parte do mundo, alguma coisa comum a todos nós. A falência do bom senso aponta, como uma vara mágica, o lugar em que ocorreu esse desmoronamento.

        Em todo caso, a resposta à questão: – Por que Joãozinho não sabe ler? – ou à questão mais geral: – Por que os níveis escolares da escola americana média acham-se tão atrasados em relação aos padrões médios na totalidade dos países da Europa? – não é, infelizmente, simplesmente o fato de ser este um país jovem que não alcançou ainda os padrões do Velho Mundo, mas, ao contrário, o fato de ser este país, nesse campo particular, o mais “avançado” e moderno do mundo. E isso é verdadeiro em um dúplice sentido: em parte alguma os problemas educacionais de uma sociedade de massas se tornaram tão agudos, e em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no cam- [fim da p. 227] po da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente. Desse modo, a crise na educação americana de um lado, anuncia a bancarrota da educação progressiva e, de outro, apresenta um problema, imensamente difícil por ter surgido sob as condições de uma sociedade de massas e em resposta às suas exigências.

        A esse respeito, devemos ter em mente um outro fator mais geral que, é certo, não provocou a crise, mas que a agravou em notável intensidade, e que é o papel singular que o conceito de igualdade desempenha e sempre desempenhou na vida americana. Há nisso muito mais que a igualdade perante a lei, mais, também, que o nivelamento das distinções de classe, e mais ainda que o expresso na frase “igualdade de oportunidades”, embora esta tenha uma maior importância em nosso contexto, do que, no modo de ver americano, o direito à educação é um dos inalienáveis direitos cívicos. Este último foi decisivo para a estrutura do sistema de escolas públicas, porquanto escolas secundárias, no sentido europeu, constituem exceções. Como a freqüência escolar obrigatória se estende à idade de dezesseis anos, toda criança deve chegar ao colégio, e o colégio é portanto, basicamente, uma espécie de continuação da escola primária. Em conseqüência dessa ausência de uma escola secundária, a preparação para o curso superior tem que ser proporcionada pelos próprios cursos superiores, cujos currículos padecem, por isso, de uma sobrecarga crônica, a qual afeta por sua vez a qualidade do trabalho ali realizado.

        Poder-se-ia talvez pensar, à primeira vista, que essa anomalia pertence à própria natureza de uma sociedade de massas na qual a educação não é mais um privilégio das classes abastadas. Uma vista d’olhos na Inglaterra, onde, como todos sabem, a educação secundária também foi posta à disposição, em anos recentes, de todas as classes da população, mostrará que não é isso o que ocorre. Lá, ao fim da escola primária, tendo os estudantes a idade de onze anos, instituiu-se o temível exame que elimina quase 10% dos escolares qualificados para instrução superior. O rigor dessa seleção não foi aceito, mesmo na Inglaterra, sem protestos; na América, ele simplesmente teria sido im- [fim da p. 228] possível. O que é intentado na Inglaterra é a “meritocracia”, que é obviamente mais uma vez o estabelecimento de uma oligarquia, dessa vez não de riqueza ou de nascimento, mas de talento. Mas isso significa, mesmo que o povo inglês não esteja inteiramente esclarecido a respeito, que, mesmo sob um governo socialista, o país continuará a ser governado como o tem sido desde tempos imemoriais, isto é, nem como monarquia nem como democracia, porém como oligarquia ou aristocracia – a última, caso se admita o ponto de vista de que os mais dotados são também os melhores, o que não é de modo algum uma certeza. Na América, uma divisão quase física dessa espécie entre crianças muito dotadas e pouco dotadas seria considerada intolerável. A meritocracia contradiz, tanto quanto qualquer outra oligarquia, o princípio da igualdade que rege uma democracia igualitária.

        Assim, o que torna a crise educacional na América tão particularmente aguda e o temperamento político do país, que espontaneamente peleja para igualar ou apagar tanto quanto possível as diferenças entre jovens e velhos, entre dotados e pouco dotados, entre crianças e adultos e, particularmente, entre alunos e professores. É óbvio que um nivelamento desse tipo só pode ser efetivamente consumado às custas da autoridade do mestre ou às expensas daquele que é mais dotado, dentre os estudantes. Entretanto, é igualmente óbvio, pelo menos a qualquer pessoa que tenha tido algum contato com o sistema educacional americano, que essa dificuldade, enraizada na atitude política do país, possui também grandes vantagens, não apenas de tipo humano mas também educacionalmente falando; em todo caso, esses fatores gerais não podem explicar a crise em que nos encontramos presentemente, e tampouco justificam as medidas que a precipitaram.

II

        Essas desastrosas medidas podem ser remontadas esquematicamente a três pressupostos básicos, todos mais do que familiares. O primeiro é o de que existe [fim da p. 229] um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças, autônomos e que se deve, na medida do possível, permitir que elas governem. Os adultos aí estão apenas para auxiliar esse governo. A autoridade que diz às crianças individualmente o que fazer e o que não fazer repousa no próprio grupo de crianças – e isso, entre outras conseqüências, gera uma situação em que o adulto se acha impotente ante a criança individual e sem contato com ela. Ele apenas pode dizer-lhe que faça aquilo que lhe agrada e depois evitar que o pior aconteça. As relações reais e normais entre crianças e adultos, emergentes do fato de que pessoas de todas as idades se encontram sempre simultaneamente reunidas no mundo, são assim suspensas. E é assim da essência desse primeiro pressuposto básico levar em conta somente o grupo, e não a criança individual.

        Quanto à criança no grupo, sua situação, naturalmente, é bem pior que antes. A autoridade de um grupo, mesmo que este seja um grupo de crianças, é sempre consideravelmente mais forte e tirânica do que a mais severa autoridade de um indivíduo isolado. Se a olharmos do ponto de vista da criança individual, as chances desta de se rebelar ou fazer qualquer coisa por conta própria são praticamente nulas; ela não se encontra mais em uma luta bem desigual com uma pessoa que, é verdade, tem absoluta superioridade sobre ela, mas no combate a quem pode, no entanto, contar com a solidariedade das demais crianças, isto é, de sua própria classe; em vez isso, encontra-se na posição, por definição irremediável, de uma minoria de um em confronto com a absoluta maioria dos outros. Poucas pessoas adultas são capazes de suportar uma situação dessas, mesmo quando ela não é sustentada por meios de compulsão externos; as crianças são pura e simplesmente incapazes de fazê-lo.

        Assim ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria. Em todo caso, o resultado foi serem as crianças, por assim dizer, banidas do mundo dos adultos. São elas, ou jogadas a si [fim da p. 230] mesmas, ou entregues à tirania de seu próprio grupo, contra o qual, por sua superioridade numérica, elas não podem se rebelar, contra o qual, por serem crianças, não podem argumentar, e do qual não podem escapar para nenhum outro mundo por lhes ter sido barrado o mundo dos adultos. A reação das crianças a essa pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinqüência juvenil, e freqüentemente é uma mistura de ambos.

        O segundo pressuposto básico que veio à tona na presente crise tem a ver com o ensino. Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo, a Pedagogia transformou-se em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada. Um professor, pensava-se, é um homem que pode simplesmente ensinar qualquer coisa; sua formação é no ensino, e não no domínio de qualquer assunto particular. Essa atitude, como logo veremos, está naturalmente, intimamente ligada a um pressuposto básico acerca da aprendizagem. Além disso, ela resultou nas últimas décadas em um negligenciamento extremamente grave da formação dos professores em suas próprias matérias, particularmente nos colégios públicos. Como o professor não precisa conhecer sua própria matéria, não raro acontece encontrar-se apenas um passo à frente de sua classe em conhecimento. Isso quer dizer, por sua vez, que não apenas os estudantes são efetivamente abandonados a seus próprios recursos, mas também que a fonte mais legítima da autoridade do professor, como a pessoa que, seja dada a isso a forma que se queira, sabe mais, e pode fazer mais que nós mesmos, não é mais eficaz. Dessa forma, o professor não-autoritário, que gostaria de se abster de todos os métodos de compulsão por ser capaz de confiar apenas em sua própria autoridade, não pode mais existir.

        Contudo, o pernicioso papel que representam na crise atual a Pedagogia e as escolas de professores só se tornou possível devido a uma teoria moderna acerca da aprendizagem. Era muito simplesmente a aplicação do terceiro pressuposto básico em nosso contexto, um pressuposto que o mundo moderno defendeu durante séculos e que encontrou expressão conceitual sis- [fim da p. 231] temática no Pragmatismo. Esse pressuposto básico é de que só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos, e sua aplicação à educação é tão primária quanto óbvia: consiste em substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer. O motivo por que não foi atribuída nenhuma importância ao domínio que tenha o professor de sua matéria foi o desejo de levá-lo ao exercício contínuo da atividade de aprendizagem, de tal modo que ele não transmitisse, como se dizia, “conhecimento petrificado”, mas, ao invés disso, demonstrasse constantemente como o saber é produzido. A intenção consciente não era a de ensinar conhecimentos, mas sim de inculcar uma habilidade, o resultado foi uma espécie de transformação de instituições de ensino em instituições vocacionais que tiveram tanto êxito em ensinar a dirigir um automóvel ou a utilizar uma máquina de escrever, ou, o que é mais importante para a “arte” de viver, como ter êxito com outras pessoas e ser popular, quanto foram incapazes de fazer com que a criança adquirisse os pré-requisitos normais de um currículo padrão.

        Entretanto, essa descrição é falha, não apenas por exagerar obviamente com o fito de aclarar um argumento, como por não levar em conta como, nesse processo, se atribuiu importância toda especial à diluição, levada tão longe quanto possível, da distinção entre brinquedo e trabalho – em favor do primeiro. O brincar era visto como o modo mais vívido e apropriado de comportamento da criança no mundo, por ser a única forma de atividade que brota espontaneamente de sua existência enquanto criança. Somente o que pode ser aprendido mediante o brinquedo faz justiça a essa vivacidade. A atividade característica da criança, pensava-se, está no brinquedo; a aprendizagem no sentido antigo, forçando a criança a uma atitude de passividade, obrigava-a a abrir mão de sua própria iniciativa lúdica.

        A íntima conexão entre essas duas coisas – a substituição da aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo brincar – pode ser ilustrada diretamente pelo ensino de línguas: a criança deve aprender falando, [fim da p. 232] isto é, fazendo, e não pelo estudo da gramática e da sintaxe; em outras palavras, deve aprender um língua estranha da mesma maneira como, quando criancinha, aprendeu sua própria língua: como que ao brincar e na continuidade ininterrupta da mera existência. Sem mencionar a questão de saber se isso é possível ou não – é possível, em escala limitada, somente quando se pode manter a criança o dia todo no ambiente de língua estrangeira -, é perfeitamente claro que esse processo tenta conscientemente manter a criança mais velha o mais possível ao nível da primeira infância. Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância.

        Seja qual for a conexão entre fazer e aprender, e qualquer que seja a validez da fórmula pragmática, sua aplicação à educação, ou seja, ao modo de aprendizagem da criança, tende a tornar absoluto o mundo da infância exatamente da maneira como observamos no caso do primeiro pressuposto básico. Também aqui, sob o pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio, mundo, na medida em que este pode ser chamado de um mundo. Essa retenção da criança é artificial porque extingue o relacionamento natural entre adultos e crianças, o qual, entre outras coisas, consiste do ensino e da aprendizagem, e porque oculta ao mesmo tempo o fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é uma etapa temporária, uma preparação para a condição adulta.

        A atual crise, na América, resulta do reconhecimento do caráter destrutivo desses pressupostos básicos e de uma desesperada tentativa de reformar todo o sistema educacional, ou seja, de transformá-lo inteiramente. Ao fazê-lo, o que se está procurando de fato – exceto quanto aos planos de uma imensa ampliação das facilidades de educação nas Ciências Físicas e em tecnologia – não é mais que uma restauração: o ensino será conduzido de novo com autoridade; o brinquedo deverá ser interrompido durante as horas de [fim da p. 233] aula, e o trabalho sério retomado; a ênfase será deslocada das habilidades extracurriculares para os conhecimentos prescritos no currículo; fala-se mesmo, por fim, de transformar os atuais currículos dos professores de modo que eles mesmos tenham de aprender algo antes de se converterem em negligentes para com as crianças.

        Essas reformas propostas, que estão ainda em discussão e são de interesse puramente norte-americano, não precisam nos ocupar aqui. Não discutirei tampouco a questão mais técnica, embora talvez a longo prazo ainda mais importante, de como é possível reformular os currículos de escolas secundárias e elementares de todos os países de modo a prepará-las para as exigências inteiramente novas do mundo de hoje. O que importa para nossa argumentação é uma dupla questão. Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional, isto é, quais são os motivos reais para que, durante décadas, se pudessem dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso? Em segundo lugar, o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação – não no sentido de que sempre se pode aprender, dos erros, o que não se deve fazer, mas sim refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização, ou seja, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana? Começaremos com a segunda questão.

III

        Uma crise na educação em qualquer ocasião originaria séria preocupação, mesmo se não refletisse, como ocorre no presente caso, uma crise e uma instabilidade mais gerais na sociedade moderna. A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, [fim da p. 234] objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação. Esse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo, e não se aplica às formas de vida animais; corresponde a um duplo relacionamento, o relacionamento com o mundo, de um lado, e com a vida, de outro. A criança partilha o estado de vir a ser com todas as coisas vivas; com respeito à vida e seu desenvolvimento, a criança é um ser humano em processo de formação, do mesmo modo que um gatinho é um gato em processo de formação. Mas a criança só é nova em relação a um mundo que existia antes dela, que continuará após sua morte e no qual transcorrerá sua vida. Se a criança não fosse um recém-chegado nesse mundo humano, porém simplesmente uma criatura viva ainda não concluída, a educação seria apenas uma função da vida e não teria que consistir em nada além da preocupação para com a preservação da vida e do treinamento e na prática do viver que todos os animais assumem em relação a seus filhos.

        Os pais humanos, contudo, não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a concepção e o nascimento, mas simultaneamente os introduziram em um mundo. Eles assumem na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo, pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem; com efeito podem entrar em mútuo conflito. A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração.

        Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a família, cujos membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes. Essas quatro paredes, entre as quais a vida familiar privada [fim da p. 235] das pessoas é vivida, constitui um escudo contra o mundo e, sobretudo, contra o aspecto público do mundo. Elas encerram um lugar seguro, sem o que nenhuma coisa viva pode medrar. Isso é verdade não somente para a vida da infância, mas para a vida humana em geral. Toda vez que esta é permanentemente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança, sua qualidade vital é destruída. No mundo público, comum a todos, as pessoas são levadas em conta, e assim também o trabalho, isto é, o trabalho de nossas mãos com que cada pessoa contribui para com o mundo comum; porém a vida qua vida não interessa aí. O mundo não lhe pode dar atenção, e ela deve ser oculta e protegida do mundo.

        Tudo que vive, e não apenas a vida vegetativa, emerge das trevas, e, por mais forte que seja sua tendência natural a orientar-se para a luz, mesmo assim precisa da segurança da escuridão para poder crescer. Esse, com efeito, pode ser o motivo por que com tanta freqüência crianças de pais famosos não dão em boa coisa. A fama penetra as quatro paredes e invade seu espaço privado, trazendo consigo, sobretudo nas condições de hoje, o clarão implacável do mundo público, inundando tudo nas vidas privadas dos implicados, de tal maneira que as crianças não têm mais um lugar seguro onde possam crescer. Ocorre, porém, exatamente a mesma destruição do espaço vivo real toda vez que se tenta fazer das próprias crianças um espécie de mundo. Entre esses grupos de iguais surge então uma espécie de vida pública, e, sem levar absolutamente em conta o fato de que esta não é uma vida pública real e de que toda a empresa é de certa forma uma fraude, permanece o fato de que as crianças – isto é, seres humanos em processo de formação, porém ainda não acabados – são assim forçadas a se expor à luz da existência pública.

        Parece óbvio que a educação moderna, na medida em que procura estabelecer um mundo de crianças, destrói as condições necessárias ao desenvolvimento e crescimento vitais. Contudo, choca-nos como algo realmente estranho que tal dano ao desenvolvimento da criança seja o resultado da educação moderna, pois [fim da p. 236] esta sustentava que seu único propósito era servir a criança, rebelando-se contra os métodos do passado por não levarem suficientemente em consideração a natureza íntima da criança e suas necessidades. “O Século da Criança”, como podemos lembrar, iria emancipar a criança e liberá-la dos padrões originários de um mundo adulto. Como pôde então acontecer que as mais elementares condições de vida necessárias ao crescimento e desenvolvimento da criança fossem desprezadas ou simplesmente ignoradas? Como pôde acontecer que se expusesse a criança àquilo que, mais que qualquer outra coisa, caracterizava o mundo adulto, o seu aspecto público, logo após se ter chegado à conclusão de que o erro em toda a educação passada fora ver a criança como não sendo mais que um adulto em tamanho reduzido?

        O motivo desse estranho estado de coisas nada tem a ver, diretamente, com a educação; deve antes ser procurado nos juízos é preconceitos acerca da natureza da vida privada e do mundo público e sua relação mútua, característicos da sociedade moderna desde o início dos tempos modernos e que os educadores, ao começarem relativamente tarde a modernizar a educação, aceitaram como postulados evidentes por si mesmos, sem consciência das conseqüências que deveriam acarretar necessariamente para a vida da criança. É uma peculiaridade de nossa sociedade, de modo algum uma coisa necessária, considerar a vida, isto é, a vida terrena dos indivíduos e da família, como o bem supremo; por esse motivo, em contraste com todos os séculos anteriores, ela emancipou essa vida e todas as atividades envolvidas em sua preservação e enriquecimento do ocultamento da privatividade expondo-a à luz do mundo público. É esse o sentido real da emancipação dos trabalhadores e das mulheres, não como pessoas, sem dúvida, mas na medida em que preenchem uma função necessária no processo vital da sociedade.

        Os últimos a serem afetados por esse processo de emancipação foram as crianças, e aquilo mesmo que significara uma verdadeira liberação para os trabalhadores e mulheres – pois eles não eram somente traba- [fim da p. 237] lhadores e mulheres, mas também pessoas, tendo portanto direito ao mundo público, isto é, a verem e serem vistos, a falar e serem ouvidos – constituiu abandono e traição no caso das crianças, que ainda estão no estágio em que o simples fato da vida e do crescimento prepondera sobre o fator personalidade. Quanto mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre aquilo que é particular e aquilo que é público, entre o que somente pode vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz do mundo público, ou seja, quanto mais ela introduz entre o privado e o público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e vice-versa, mais difíceis torna as coisas para suas crianças, que pedem, por natureza, a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu amadurecimento.

        Por mais graves que possam ser essas violações das condições para o crescimento vital, é certo que elas não foram de todo intencionais; o objetivo central de todos os esforços da educação moderna foi o bem-estar da criança, fato esse que evidentemente não se torna menos verdadeiro caso os esforços feitos nem sempre tenham logrado êxito em promover o bem-estar da maneira esperada. A situação é inteiramente diversa na esfera das tarefas educacionais não mais dirigidas para a criança, porém à pessoa jovem, ao recém-chegado e forasteiro, nascido em um mundo já existente e que não conhece. Tais tarefas são basicamente, mas não exclusivamente, responsabilidade das escolas; competem à sua alçada o ensino e a aprendizagem, e o fracasso neste campo é o problema mais urgente da América atualmente. O que jaz na base disso?

        Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola. No entanto, a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. Aqui, o comparecimento não é exigido pela família, e sim pelo Estado, isto é, o mundo público, e assim, em relação à crian- [fim da p. 238] ça, a escola representa em certo sentido o mundo, embora não seja ainda o mundo de fato. Nessa etapa da educação, sem dúvida, os adultos assumem mais uma vez uma responsabilidade pela criança, só que, agora, essa não é tanto a responsabilidade pelo bem-estar vital de uma coisa em crescimento como por aquilo que geralmente denominamos de livre desenvolvimento de qualidades e talentos pessoais. Isto, do ponto de vista geral e essencial, é a singularidade que distingue cada ser humano de todos os demais, a qualidade em virtude da qual ele não é apenas um forasteiro no mundo, mas alguma coisa que jamais esteve aí antes.

        Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova, deve-se cuidar para que essa coisa nova chegue à fruição em relação ao mundo como ele é. Em todo caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é. Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.

        Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assunte a forma de autoridade. A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa. Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: – Isso é o nosso mundo. [fim da p. 239]

        Pois bem: sabemos todos como as coisas andam hoje em dia com respeito à autoridade. Qualquer que seja nossa atitude pessoal face a este problema, é óbvio que, na vida pública, e política, a autoridade ou não representa mais nada – pois a violência e o terror exercidos pelos países totalitários evidentemente nada têm a ver com autoridade -, ou, no máximo, desempenha um papel altamente contestado. Isso, contudo, simplesmente significa, em essência, que as pessoas não querem mais exigir ou confiar a ninguém o ato de assumir a responsabilidade por tudo o mais, pois sempre que a autoridade legítima existiu ela esteve associada com a responsabilidade pelo curso das coisas no mundo. Ao removermos a autoridade da vida política e pública, pode ser que isso signifique que, de agora em diante, se exija de todos uma igual responsabilidade pelo rumo do mundo. Mas isso pode também significar que as exigências do mundo e seus reclamos de ordem estejam sendo consciente ou inconscientemente repudiados; toda e qualquer responsabilidade pelo mundo está sendo rejeitada, seja a responsabilidade de dar ordens, seja a de obedecê-las. Não resta dúvida de que, na perda moderna da autoridade, ambas as intenções desempenham um papel e têm muitas vezes, simultanea e inextricavelmente, trabalhado juntas.

        Na educação, ao contrário, não pode haver tal ambigüidade face à perda hodierna de autoridade. As crianças não podem derrubar a autoridade educacional, como se estivessem sob a opressão de uma maioria adulta – embora mesmo esse absurdo tratamento das crianças como urna minoria oprimida carente de libertação tenha sido efetivamente submetido a prova na prática educacional moderna. A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças.

        Evidentemente, há uma conexão entre a perda de autoridade na vida pública e política e nos âmbitos privados e pré-políticos da família e da escola. Quanto mais radical se torna a desconfiança face a autoridade na esfera pública, mais aumenta, naturalmente, a pro- [fim da p. 240] babilidade de que a esfera privada não permaneça incólume. Há o fato adicional, muito provavelmente decisivo, de que há tempos imemoriais nos acostumamos, em nossa tradição de pensamento político, a considerar a autoridade dos pais sobre os filhos e de professores sobre alunos como o modelo por cujo intermédio se compreendia a autoridade política. É justamente tal modelo, que pode ser encontrado já em Platão e Aristóteles, que confere tão extraordinária ambigüidade ao conceito de autoridade em política. Ele se baseia sobretudo em uma superioridade absoluta que jamais poderia existir entre adultos e que, do ponto de vista da dignidade humana, não deve nunca existir. Em segundo lugar, ao seguir o modelo da criação dos filhos, baseia-se em uma superioridade puramente temporária, tornando-se, pois, autocontraditório quando aplicado a relações que por natureza não são temporárias – como as relações entre governantes e governados. Decorre da natureza do problema – isto é, da natureza da atual crise de autoridade e da natureza de nosso pensamento político tradicional – que a perda de autoridade iniciada na esfera política deva terminar na esfera privada; obviamente não é acidental que o lugar em que a autoridade política foi solapada pela primeira vez, isto é, a América, seja onde a crise moderna da educação se faça sentir com maior intensidade.

        A perda geral de autoridade, de fato, não poderia encontrar expressão mais radical do que sua intrusão na esfera pré-política, em que a autoridade parecia ser ditada pela própria natureza e independer de todas as mudanças históricas e condições políticas. O homem moderno, por outro lado, não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo, para seu desgosto com o estado de coisas, que sua recusa a assumir, em relação às crianças, a responsabilidade por tudo isso. É como se os pais dissessem todos os dias: – Nesse mundo, mesmo nós não estamos muito a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios para nós. Vocês devem tentar entender isso do jeito que puderem; em todo [fim da p. 241] caso, vocês não têm o direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por vocês.

        Essa atitude, é claro, nada tem a ver com o desejo revolucionário de uma nova ordem no mundo – Novus Ordo Seclorum – que outrora animou a América; mais que isso, é um sintoma daquele moderno estranhamento do mundo visível em toda parte mas que se apresenta em forma particularmente radical e desesperada sob as condições de uma sociedade de massa. É verdade que as experiências pedagógicas modernas têm assumido – e não só na América – poses muito revolucionárias, o que ampliou até certo ponto a dificuldade de identificar a situação com clareza, provocando certo grau de confusão na discussão do problema. Em contradição com todos esses comportamentos, continua existindo o fato inquestionável de que, durante o período em que a América foi realmente animada por este espírito revolucionário, ela jamais sonhou iniciar a nova ordem pela educação, permanecendo, ao contrário, conservadora em matéria educacional.

        A fim de evitar mal-entendidos: parece-me que o conservadorismo, no sentido de conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa, – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo. Mesmo a responsabilidade ampla pelo mundo que é aí assumida implica, é claro, uma atitude conservadora. Mas isso permanece válido apenas no âmbito da educação, ou melhor, nas relações entre adultos e crianças, e não no âmbito da política, onde agimos em meio a adultos e com iguais. Tal atitude conservadora, em política – aceitando o mundo como ele é, procurando somente preservar o status quo -, não pode senão levar à destruição, visto que o mundo, tanto no todo como em parte, é irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo, a menos que existam seres humanos determinados a intervir, a alterar, a criar aquilo que é novo. As palavras de Hamlet: – “The time is out of joint. O cursed spite that ever I was born to set it right” [“O tempo está fora dos eixos. O ódio maldito ter nascido para colocá-lo em ordem”] – são mais [fim da p. 242] ou menos verídicas para cada nova geração, embora tenham adquirido talvez desde o início de nosso século, uma validez mais persuasiva do que antes.

        Basicamente, estamos sempre educando para um mundo que ou já está fora dos eixos ou para aí caminha, pois é essa a situação humana básica, em que o mundo é criado por mãos mortais e serve de lar aos mortais durante tempo limitado. O mundo, visto que feito por mortais, se desgasta, e, dado que seus habitantes mudam continuamente, corre o risco de tornar-se mortal como eles. Para preservar o mundo contra a mortalidade de seus criadores e habitantes, ele deve ser, continuamente, posto em ordem. O problema é simplesmente educar de tal modo que um por-em-ordem continue sendo efetivamente possível, ainda que não possa nunca, é claro, ser assegurado. Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura. Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição.

IV

        A verdadeira dificuldade na educação moderna está no fato de que, a despeito de toda a conversa da moda acerca de um novo conservadorismo, até mesmo aquele mínimo de conservação e de atitude conservadora sem o qual a educação simplesmente não é possível se torna, em nossos dias, extraordinariamente difícil de atingir. Há sólidas razões para isso. A crise da autoridade na educação guarda a mais estreita conexão com a crise da tradição, ou seja, com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado. É sobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto [fim da p. 243] da crise moderna, pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado. Durante muitos séculos, isto é, por todo o período da civilização romano-cristã, não foi necessário tomar consciência dessa qualidade particular de si próprio, pois a reverência ante o passado era parte essencial da mentalidade romana, e isso não foi modificado ou extinto pelo Cristianismo, mas apenas deslocado sobre fundamentos diferentes.

        Era da essência da atitude romana (embora de maneira alguma isso fosse verdadeiro para qualquer civilização, ou mesmo para a tradição ocidental como um todo) considerar o passado qua passado como um modelo, os antepassados, em cada instância, como exemplos de conduta para seus descendentes; crer que toda grandeza jaz no que foi, e, portanto, que a mais excelente qualidade humana é a idade provecta; que o homem envelhecido, visto ser já quase um antepassado, pode servir de modelo para os vivos. Tudo isso se põe em contradição não só com nosso mundo e com a época moderna, da Renascença em diante, como, por exemplo, com a atitude grega diante da vida. Quando Goethe disse que envelhecer é “o gradativo retirar-se do mundo das aparências”, sua observação era feita no espírito dos gregos, para os quais ser e aparência coincidiam. A atitude romana teria sido que justamente ao envelhecer e ao desaparecer gradativamente da comunidade dos mortais o homem atinge sua forma mais característica de existência, ainda que, em relação ao mundo das aparências, esteja em vias de desaparecer; isto porque somente agora ele se pode acercar da existência na qual ele será uma autoridade para os outros.

        Contra o pano de fundo inabalado de uma tradição dessa natureza, na qual a educação possui uma função política (e esse caso era único), é de fato relativamente fácil fazer direito as coisas em matéria de educação, sem sequer fazer uma pausa para apreciar o que se está fazendo, tão completo é o acordo entre o ethos específico do princípio pedagógico e as convicções éticas e morais básicas da sociedade como um todo. Nas palavras de Políbio, educar era simplesmen- [fim da p. 244] te “fazer-vos ver que sois inteiramente dignos de vossos antepassados”, e nesse mister o educador podia ser um “companheiro de luta” um “companheiro de trabalho” por ter também, embora em nível diverso, atravessado a vida com os olhos grudados no passado. Companheirismo e autoridade não eram nesse caso senão dois aspectos da mesma substância, e a autoridade do mestre arraigava-se firmemente na autoridade inclusiva do passado enquanto tal. Hoje em dia, porém, não nos encontramos mais em tal posição; não faz muito sentido agirmos como se a situação fosse a mesma, como se apenas nos houvéssemos como que extraviado do caminho certo, sendo livres para, a qualquer momento, reencontrar o rumo. Isso quer dizer que não se pode, onde quer que a crise haja ocorrido no mundo moderno, ir simplesmente em frente, e tampouco simplesmente voltar para trás. Tal retrocesso nunca nos levará a parte alguma, exceto à mesma situação da qual a crise acabou de surgir. O retorno não passaria de uma repetição da execução – embora talvez em forma diferente, visto não haver limites às possibilidades de noções absurdas e caprichosas que são ataviadas como a última palavra em ciência. Por outro lado, a mera e irrefletida perseverança, seja pressionando para frente a crise, seja aderindo à rotina que acredita bonachonamente que a crise não engolfará sua esfera particular de vida, só pode, visto que se rende ao curso do tempo, conduzir à ruína; para ser mais precisa, ela só pode aumentar o estranhamento do mundo pelo qual já somos ameaçados de todos os flancos. Ao considerar os princípios da educação temos de levar em conta esse processo de estranhamento do mundo; podemos até admitir que nos defrontamos aqui presumivelmente com um processo automático, sob a única condição de não esquecermos que está ao alcance do poder do pensamento e da ação humana interromper e deter tais processos.

        O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido [fim da p. 245] coeso pela tradição. Isso significa, entretanto, que não apenas professores e educadores, porém todos nós, na medida em que vivemos em um mundo junto à nossas crianças e aos jovens, devemos ter em relação a eles uma atitude radicalmente diversa da que guardamos um para com o outro. Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos demais, e acima de tudo do âmbito da vida pública e política, para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral, não devendo reclamar uma aplicação generalizada no mundo dos adultos.

        Na prática, a primeira conseqüência disso seria urna compreensão bem clara de que a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver. Dado que o mundo é velho, sempre mais que elas mesmas, a aprendizagem volta-se inevitavelmente para o passado, não importa o quanto a vida seja transcorrida no presente. Em segundo lugar, a linha traçada entre crianças e adultos deveria significar que não se pode nem educar adultos nem tratar crianças como se elas fossem maduras; jamais se deveria permitir, porém, que tal linha se tornasse uma muralha a separar as crianças da comunidade adulta, como se não vivessem elas no mesmo mundo e como se a infância fosse um estado humano autônomo, capaz de viver por suas próprias leis. É impossível determinar mediante uma regra geral onde a linha limítrofe entre a infância e a condição adulta recai, em cada caso. Ela muda freqüentemente, com respeito à idade, de país para país, de uma civilização para outra e também de indivíduo para indivíduo. A educação, contudo, ao contrário da aprendizagem, precisa ter um final previsível. Em nossa civilização esse final coincide provavelmente com o diploma colegial, não com a conclusão do curso secundário, pois o treinamento profissional nas universidades ou cursos técnicos, embora sempre tenha algo a ver com a educação, é, não obstante, em si mesmo uma espécie de especialização. Ele não visa mais a introduzir o jovem no mundo como um todo, mas sim em um segmento limitado e particular dele. Não se pode educar sem ao mesmo tempo [fim da p. 246] ensinar; uma educação sem aprendizagem é vazia e portanto degenera, com muita facilidade, em retórica moral e emocional. É muito fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender durante o dia todo sem por isso ser educado. Tudo isso são detalhes particulares, contudo, que na verdade devem ser entregues aos especialistas e pedagogos.

        O que nos diz respeito, e que não podemos portanto delegar à ciência específica da pedagogia, é a relação entre adultos e crianças em geral, ou, para colocá-lo em termos ainda mais gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento. A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. [fim da p. 247]