A CRISE NA EDUCAÇÃO – Hannah Arendt

A CRISE NA EDUCAÇÃO – Hannah Arendt

Hannah Arendt

I

 

        A crise geral que acometeu o mundo moderno em toda parte e em quase toda esfera da vida se manifesta diversamente em cada país, envolvendo áreas e assumindo formas diversas. Na América, um de seus aspectos mais característicos e sugestivos é a crise periódica na educação, que se tornou, no transcurso da última década pelo menos, um problema político de primeira grandeza, aparecendo quase diariamente no noticiário jornalístico. Certamente não é preciso grande imaginação para detectar os perigos de um declí- [fim da p. 221] nio sempre crescente nos padrões elementares na totalidade do sistema escolar, e a seriedade do problema tem sido sublinhada apropriadamente pelos inúmeros esforços baldados das autoridades educacionais para deter a maré. Apesar disso, se compararmos essa crise na educação com as experiências políticas de outros países no século XX, com a agitação revolucionária que se sucedeu à Primeira Guerra Mundial, com os campos de concentração e de extermínio, ou mesmo com o profundo mal-estar que, não obstante as aparências contrárias de propriedade, se espalhou por toda a Europa a partir do término da Segunda Guerra Mundial, é um tanto difícil dar a uma crise na educação a seriedade devida. É de fato tentador considerá-la como um fenômeno local e sem conexão com as questões principais do século, pelo qual se deveriam responsabilizar determinadas peculiaridades da vida nos Estados Unidos que não encontrariam provavelmente contrapartida nas demais partes do mundo.

        Se isso fosse verdadeiro contudo a crise em nosso sistema escolar não se teria tornado um problema político e as autoridades educacionais não teriam sido incapazes de lidar com ela a tempo. Certamente, há aqui mais que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não sabe ler. Além disso, há sempre a tentação de crer que estamos tratando de problemas específicos confinados a fronteiras históricas e nacionais, importantes somente para os imediatamente afetados. É justamente essa crença que se tem demonstrado invariavelmente falsa em nossa época: pode-se admitir como uma regra geral neste século que qualquer coisa que seja possível em um país pode, em futuro previsível, ser igualmente possível em praticamente qualquer outro país.

        À parte essas razões gerais que fariam parecer aconselhável, ao leigo, dar atenção a distúrbios em áreas acerca das quais, em sentido especializado, ele pode nada saber (e esse é, evidentemente, o meu caso ao tratar de uma crise na educação, posto que não sou educadora profissional), há outra razão ainda mais convincente para que ele se preocupe com uma situação problemática na qual ele não está imediatamente [fim da p. 222] envolvido. É a oportunidade, proporcionada pelo próprio fato da crise – que dilacera fachadas e oblitera preconceitos -, de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu, e a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo. O desaparecimento de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que originariamente elas constituíam respostas a questões. Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão.

        Por mais claramente que um problema geral possa se apresentar em uma crise, ainda assim é impossível chegar a isolar completamente o elemento universal das circunstâncias específicas em que ele aparece. Embora a crise na educação possa afetar todo o mundo, é significativo o fato de encontrarmos sua forma mais extrema na América, e a razão é que, talvez, apenas na América uma crise na educação poderia se tornar realmente um fator na política. Na América, indiscutivelmente a educação desempenha um papel diferente e incomparavelmente mais importante politicamente do que em outros países. Tecnicamente, é claro, a explicação reside no fato de que a América sempre foi uma terra de imigrantes; como é óbvio, a fusão extremamente difícil dos grupos étnicos mais diversos – nunca completamente lograda, mas superando continuamente as expectativas – só pode ser cumprida mediante a instrução, educação e americanização dos filhos de imigrantes. Como para a maior parte dessas crianças o inglês não é a língua natal, mas tem que ser aprendida na escola, esta obviamente deve assumir funções que, em uma nação-estado, seriam desempenhadas normalmente no lar.

        Contudo, o mais decisivo para, nossas considerações é o papel que a imigração contínua desempenha [fim da p. 223] na consciência política e na estrutura psíquica do país. A América não é simplesmente um país colonial carecendo de imigrantes para povoar a terra, embora independa deles em sua estrutura política. Para a América o fator determinante sempre foi o lema impresso em toda nota de dólar – Novus Ordo Seclorum, Uma Nova Ordem do Mundo. Os imigrantes, os recém-chegados, são para o país uma garantia de que isto representa a nova ordem. O significado dessa nova ordem, dessa fundação de um novo mundo contra o antigo, foi e é a eliminação da pobreza e da opressão. Mas ao mesmo tempo, sua grandeza consiste no fato de que, desde o início, essa nova ordem não se desligou do mundo exterior – como costumava suceder alhures na fundação de utopias – para confrontar-se com um modelo perfeito, e tampouco foi seu propósito impor pretensões imperiais ou ser pregada como um evangelho a outros. Em vez disso, sua relação com o mundo exterior caracterizou-se desde o início pelo fato de esta república, que planejava abolir a pobreza e a escravidão ter dado boas-vindas a todos os pobres e escravizados do mundo. Nas palavras pronunciadas por John Adams em 1765 – isto é, antes da Declaração da Independência – “Sempre considerei a colonização da América como a abertura de um grandioso desígnio da providência para a iluminação e emancipação da parte escravizada do gênero humano sobre toda a terra”. Esse foi o intento ou lei básica em conformidade com qual a América começou sua existência histórica e política.

        O entusiasmo extraordinário pelo que é novo, exibido em quase todos os aspectos da vida diária americana, e a concomitante confiança em uma “perfectibilidade ilimitada” – observada por Tocqueville como o credo do “homem sem instrução” comum, e que como tal precede de quase cem anos o desenvolvimento em outros países do Ocidente -, presumivelmente resultariam de qualquer maneira em uma atenção maior e em maior importância dadas aos recém-chegados por nascimento, isto é, as crianças, as quais, ao terem ultrapassado a infância e estarem prontas para ingressar na comunidade dos adultos como pessoas jovens, eram [fim da p. 224] [o que] os gregos chamavam simplesmente ói neói, os novos. Há o fato adicional, contudo, e que se tornou decisivo para o significado da educação, de que esse pathos do novo, embora consideravelmente anterior ao século XVIII, somente se desenvolveu conceitual e politicamente naquele século. Derivou-se dessa fonte, a princípio, um ideal educacional, impregnado de Rousseau e de fato diretamente influenciado por Rousseau, no qual a educação tornou-se um instrumento da política, e a própria atividade política foi concebida como uma forma de educação.

        O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, a partir dos tempos antigos, mostra o quanto parece natural iniciar um novo mundo com aqueles que são por nascimento e por natureza novos. No que toca à política, isso implica obviamente um grave equívoco: ao invés de juntar-se aos seus iguais, assumindo o esforço de persuasão e correndo o risco do fracasso, há a intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto, e a tentativa de produzir o novo como um fait accompli, isto é, como se o novo já existisse. Por esse motivo na Europa, a crença de que se deve começar das crianças se se quer produzir novas condições permaneceu sendo principalmente o monopólio dos movimentos revolucionários de feitio tirânico que, ao chegarem ao poder, subtraem as crianças a seus pais e simplesmente as doutrinam. A educação não pode desempenhar papel nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados. Quem quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade, política. Como não se pode educar adultos a palavra “educação” soa mal em política; o que há é um simulacro de educação, enquanto o objetivo real e a coerção sem o uso da força. Quem desejar seriamente criar uma nova ordem política mediante a educação, isto é, nem através de força e coação, nem através da persuasão, se verá obrigado à pavorosa conclusão platônica: o banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado a ser fundado. Mas mesmo às crianças que se quer educar para que sejam cidadãos de um amanhã utópico é negado, de fato, seu próprio [fim da p. 225] papel futuro no organismo político, pois, do ponto de vista dos mais novos o que quer que o mundo adulto possa propor de novo é necessariamente mais velho do que eles mesmos. Pertence a própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo.

        Tudo isso de modo algum ocorre na América, e é exatamente esse fato que torna tão difícil julgar aqui corretamente esses problemas. O papel político que a educação efetivamente representa em uma terra de imigrantes, o fato de que as escolas não apenas servem para americanizar as crianças mas afetam também a seus pais, e de que aqui as pessoas são de fato ajudadas a se desfazerem de um mundo antigo e a entrar em um novo mundo, tudo isso encoraja a ilusão de que um mundo novo está sendo construído mediante a educação das crianças.rÉ claro que a verdadeira situação absolutamente não é esta. O mundo no qual são introduzidas as crianças, mesmo na América, é um mundo velho, isto é, um mundo preexistente, construído pelos vivos e pelos mortos, e só é novo para os que acabaram de penetrar nele pela imigração. Aqui, porém, a ilusão é mais forte do que a realidade, pois brota diretamente de uma experiência americana básica, qual seja, a de que é possível fundar uma nova ordem, e o que é mais, fundá-la com plena consciência de um continuum histórico, pois a frase “Novo Mundo” retira seu significado de Velho Mundo, que, embora admirável por outros motivos, foi rejeitado por não poder encontrar nenhuma solução para a pobreza e para a opressão.

        Com respeito à própria educação, a ilusão emergente do pathos do novo produziu suas conseqüências mais sérias apenas em nosso próprio século. Antes de mais nada, possibilitou àquele complexo de modernas teorias educacionais originárias da Europa Central e que consistem de uma impressionante miscelânea de bom senso e absurdo levar a cabo, sob a divisa da [fim da p. 226] educação progressista, uma radical revolução em todo o sistema educacional. Aquilo que na Europa permanecia sendo um experimento, testado aqui e ali em determinadas escolas e em instituições educacionais isoladas e estendendo depois gradualmente sua influência a alguns bairros, na América, há cerca de vinte e cinco anos atrás, derrubou completamente, como que de um dia para outro, todas as tradições e métodos estabelecidos de ensino e de aprendizagem. Não entrarei em detalhes, e deixo de fora as escolas particulares e, sobretudo, o sistema escolar paroquial católico-romano. O fato importante é que, por causa de determinadas teorias, boas ou más, todas as regras do juízo humano normal foram postas de parte. Um procedimento como esse possui sempre grande e perniciosa importância, sobretudo em um país que confia em tão larga escala no bom senso em sua vida política. Sempre que, em questões políticas, o são juízo humano fracassa ou renuncia à tentativa de fornecer respostas, nos deparamos com uma crise; pois essa espécie de juízo é, na realidade, aquele senso comum em virtude do qual nós e nossos cinco sentidos individuais estão adaptados a um único mundo comum a todos nós, e com a ajuda do qual nele nos movemos. O desaparecimento do senso comum nos dias atuais é o sinal mais seguro da crise atual. Em toda crise, é destruída uma parte do mundo, alguma coisa comum a todos nós. A falência do bom senso aponta, como uma vara mágica, o lugar em que ocorreu esse desmoronamento.

        Em todo caso, a resposta à questão: – Por que Joãozinho não sabe ler? – ou à questão mais geral: – Por que os níveis escolares da escola americana média acham-se tão atrasados em relação aos padrões médios na totalidade dos países da Europa? – não é, infelizmente, simplesmente o fato de ser este um país jovem que não alcançou ainda os padrões do Velho Mundo, mas, ao contrário, o fato de ser este país, nesse campo particular, o mais “avançado” e moderno do mundo. E isso é verdadeiro em um dúplice sentido: em parte alguma os problemas educacionais de uma sociedade de massas se tornaram tão agudos, e em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no cam- [fim da p. 227] po da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente. Desse modo, a crise na educação americana de um lado, anuncia a bancarrota da educação progressiva e, de outro, apresenta um problema, imensamente difícil por ter surgido sob as condições de uma sociedade de massas e em resposta às suas exigências.

        A esse respeito, devemos ter em mente um outro fator mais geral que, é certo, não provocou a crise, mas que a agravou em notável intensidade, e que é o papel singular que o conceito de igualdade desempenha e sempre desempenhou na vida americana. Há nisso muito mais que a igualdade perante a lei, mais, também, que o nivelamento das distinções de classe, e mais ainda que o expresso na frase “igualdade de oportunidades”, embora esta tenha uma maior importância em nosso contexto, do que, no modo de ver americano, o direito à educação é um dos inalienáveis direitos cívicos. Este último foi decisivo para a estrutura do sistema de escolas públicas, porquanto escolas secundárias, no sentido europeu, constituem exceções. Como a freqüência escolar obrigatória se estende à idade de dezesseis anos, toda criança deve chegar ao colégio, e o colégio é portanto, basicamente, uma espécie de continuação da escola primária. Em conseqüência dessa ausência de uma escola secundária, a preparação para o curso superior tem que ser proporcionada pelos próprios cursos superiores, cujos currículos padecem, por isso, de uma sobrecarga crônica, a qual afeta por sua vez a qualidade do trabalho ali realizado.

        Poder-se-ia talvez pensar, à primeira vista, que essa anomalia pertence à própria natureza de uma sociedade de massas na qual a educação não é mais um privilégio das classes abastadas. Uma vista d’olhos na Inglaterra, onde, como todos sabem, a educação secundária também foi posta à disposição, em anos recentes, de todas as classes da população, mostrará que não é isso o que ocorre. Lá, ao fim da escola primária, tendo os estudantes a idade de onze anos, instituiu-se o temível exame que elimina quase 10% dos escolares qualificados para instrução superior. O rigor dessa seleção não foi aceito, mesmo na Inglaterra, sem protestos; na América, ele simplesmente teria sido im- [fim da p. 228] possível. O que é intentado na Inglaterra é a “meritocracia”, que é obviamente mais uma vez o estabelecimento de uma oligarquia, dessa vez não de riqueza ou de nascimento, mas de talento. Mas isso significa, mesmo que o povo inglês não esteja inteiramente esclarecido a respeito, que, mesmo sob um governo socialista, o país continuará a ser governado como o tem sido desde tempos imemoriais, isto é, nem como monarquia nem como democracia, porém como oligarquia ou aristocracia – a última, caso se admita o ponto de vista de que os mais dotados são também os melhores, o que não é de modo algum uma certeza. Na América, uma divisão quase física dessa espécie entre crianças muito dotadas e pouco dotadas seria considerada intolerável. A meritocracia contradiz, tanto quanto qualquer outra oligarquia, o princípio da igualdade que rege uma democracia igualitária.

        Assim, o que torna a crise educacional na América tão particularmente aguda e o temperamento político do país, que espontaneamente peleja para igualar ou apagar tanto quanto possível as diferenças entre jovens e velhos, entre dotados e pouco dotados, entre crianças e adultos e, particularmente, entre alunos e professores. É óbvio que um nivelamento desse tipo só pode ser efetivamente consumado às custas da autoridade do mestre ou às expensas daquele que é mais dotado, dentre os estudantes. Entretanto, é igualmente óbvio, pelo menos a qualquer pessoa que tenha tido algum contato com o sistema educacional americano, que essa dificuldade, enraizada na atitude política do país, possui também grandes vantagens, não apenas de tipo humano mas também educacionalmente falando; em todo caso, esses fatores gerais não podem explicar a crise em que nos encontramos presentemente, e tampouco justificam as medidas que a precipitaram.

II

        Essas desastrosas medidas podem ser remontadas esquematicamente a três pressupostos básicos, todos mais do que familiares. O primeiro é o de que existe [fim da p. 229] um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças, autônomos e que se deve, na medida do possível, permitir que elas governem. Os adultos aí estão apenas para auxiliar esse governo. A autoridade que diz às crianças individualmente o que fazer e o que não fazer repousa no próprio grupo de crianças – e isso, entre outras conseqüências, gera uma situação em que o adulto se acha impotente ante a criança individual e sem contato com ela. Ele apenas pode dizer-lhe que faça aquilo que lhe agrada e depois evitar que o pior aconteça. As relações reais e normais entre crianças e adultos, emergentes do fato de que pessoas de todas as idades se encontram sempre simultaneamente reunidas no mundo, são assim suspensas. E é assim da essência desse primeiro pressuposto básico levar em conta somente o grupo, e não a criança individual.

        Quanto à criança no grupo, sua situação, naturalmente, é bem pior que antes. A autoridade de um grupo, mesmo que este seja um grupo de crianças, é sempre consideravelmente mais forte e tirânica do que a mais severa autoridade de um indivíduo isolado. Se a olharmos do ponto de vista da criança individual, as chances desta de se rebelar ou fazer qualquer coisa por conta própria são praticamente nulas; ela não se encontra mais em uma luta bem desigual com uma pessoa que, é verdade, tem absoluta superioridade sobre ela, mas no combate a quem pode, no entanto, contar com a solidariedade das demais crianças, isto é, de sua própria classe; em vez isso, encontra-se na posição, por definição irremediável, de uma minoria de um em confronto com a absoluta maioria dos outros. Poucas pessoas adultas são capazes de suportar uma situação dessas, mesmo quando ela não é sustentada por meios de compulsão externos; as crianças são pura e simplesmente incapazes de fazê-lo.

        Assim ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria. Em todo caso, o resultado foi serem as crianças, por assim dizer, banidas do mundo dos adultos. São elas, ou jogadas a si [fim da p. 230] mesmas, ou entregues à tirania de seu próprio grupo, contra o qual, por sua superioridade numérica, elas não podem se rebelar, contra o qual, por serem crianças, não podem argumentar, e do qual não podem escapar para nenhum outro mundo por lhes ter sido barrado o mundo dos adultos. A reação das crianças a essa pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinqüência juvenil, e freqüentemente é uma mistura de ambos.

        O segundo pressuposto básico que veio à tona na presente crise tem a ver com o ensino. Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo, a Pedagogia transformou-se em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada. Um professor, pensava-se, é um homem que pode simplesmente ensinar qualquer coisa; sua formação é no ensino, e não no domínio de qualquer assunto particular. Essa atitude, como logo veremos, está naturalmente, intimamente ligada a um pressuposto básico acerca da aprendizagem. Além disso, ela resultou nas últimas décadas em um negligenciamento extremamente grave da formação dos professores em suas próprias matérias, particularmente nos colégios públicos. Como o professor não precisa conhecer sua própria matéria, não raro acontece encontrar-se apenas um passo à frente de sua classe em conhecimento. Isso quer dizer, por sua vez, que não apenas os estudantes são efetivamente abandonados a seus próprios recursos, mas também que a fonte mais legítima da autoridade do professor, como a pessoa que, seja dada a isso a forma que se queira, sabe mais, e pode fazer mais que nós mesmos, não é mais eficaz. Dessa forma, o professor não-autoritário, que gostaria de se abster de todos os métodos de compulsão por ser capaz de confiar apenas em sua própria autoridade, não pode mais existir.

        Contudo, o pernicioso papel que representam na crise atual a Pedagogia e as escolas de professores só se tornou possível devido a uma teoria moderna acerca da aprendizagem. Era muito simplesmente a aplicação do terceiro pressuposto básico em nosso contexto, um pressuposto que o mundo moderno defendeu durante séculos e que encontrou expressão conceitual sis- [fim da p. 231] temática no Pragmatismo. Esse pressuposto básico é de que só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos, e sua aplicação à educação é tão primária quanto óbvia: consiste em substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer. O motivo por que não foi atribuída nenhuma importância ao domínio que tenha o professor de sua matéria foi o desejo de levá-lo ao exercício contínuo da atividade de aprendizagem, de tal modo que ele não transmitisse, como se dizia, “conhecimento petrificado”, mas, ao invés disso, demonstrasse constantemente como o saber é produzido. A intenção consciente não era a de ensinar conhecimentos, mas sim de inculcar uma habilidade, o resultado foi uma espécie de transformação de instituições de ensino em instituições vocacionais que tiveram tanto êxito em ensinar a dirigir um automóvel ou a utilizar uma máquina de escrever, ou, o que é mais importante para a “arte” de viver, como ter êxito com outras pessoas e ser popular, quanto foram incapazes de fazer com que a criança adquirisse os pré-requisitos normais de um currículo padrão.

        Entretanto, essa descrição é falha, não apenas por exagerar obviamente com o fito de aclarar um argumento, como por não levar em conta como, nesse processo, se atribuiu importância toda especial à diluição, levada tão longe quanto possível, da distinção entre brinquedo e trabalho – em favor do primeiro. O brincar era visto como o modo mais vívido e apropriado de comportamento da criança no mundo, por ser a única forma de atividade que brota espontaneamente de sua existência enquanto criança. Somente o que pode ser aprendido mediante o brinquedo faz justiça a essa vivacidade. A atividade característica da criança, pensava-se, está no brinquedo; a aprendizagem no sentido antigo, forçando a criança a uma atitude de passividade, obrigava-a a abrir mão de sua própria iniciativa lúdica.

        A íntima conexão entre essas duas coisas – a substituição da aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo brincar – pode ser ilustrada diretamente pelo ensino de línguas: a criança deve aprender falando, [fim da p. 232] isto é, fazendo, e não pelo estudo da gramática e da sintaxe; em outras palavras, deve aprender um língua estranha da mesma maneira como, quando criancinha, aprendeu sua própria língua: como que ao brincar e na continuidade ininterrupta da mera existência. Sem mencionar a questão de saber se isso é possível ou não – é possível, em escala limitada, somente quando se pode manter a criança o dia todo no ambiente de língua estrangeira -, é perfeitamente claro que esse processo tenta conscientemente manter a criança mais velha o mais possível ao nível da primeira infância. Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância.

        Seja qual for a conexão entre fazer e aprender, e qualquer que seja a validez da fórmula pragmática, sua aplicação à educação, ou seja, ao modo de aprendizagem da criança, tende a tornar absoluto o mundo da infância exatamente da maneira como observamos no caso do primeiro pressuposto básico. Também aqui, sob o pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio, mundo, na medida em que este pode ser chamado de um mundo. Essa retenção da criança é artificial porque extingue o relacionamento natural entre adultos e crianças, o qual, entre outras coisas, consiste do ensino e da aprendizagem, e porque oculta ao mesmo tempo o fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é uma etapa temporária, uma preparação para a condição adulta.

        A atual crise, na América, resulta do reconhecimento do caráter destrutivo desses pressupostos básicos e de uma desesperada tentativa de reformar todo o sistema educacional, ou seja, de transformá-lo inteiramente. Ao fazê-lo, o que se está procurando de fato – exceto quanto aos planos de uma imensa ampliação das facilidades de educação nas Ciências Físicas e em tecnologia – não é mais que uma restauração: o ensino será conduzido de novo com autoridade; o brinquedo deverá ser interrompido durante as horas de [fim da p. 233] aula, e o trabalho sério retomado; a ênfase será deslocada das habilidades extracurriculares para os conhecimentos prescritos no currículo; fala-se mesmo, por fim, de transformar os atuais currículos dos professores de modo que eles mesmos tenham de aprender algo antes de se converterem em negligentes para com as crianças.

        Essas reformas propostas, que estão ainda em discussão e são de interesse puramente norte-americano, não precisam nos ocupar aqui. Não discutirei tampouco a questão mais técnica, embora talvez a longo prazo ainda mais importante, de como é possível reformular os currículos de escolas secundárias e elementares de todos os países de modo a prepará-las para as exigências inteiramente novas do mundo de hoje. O que importa para nossa argumentação é uma dupla questão. Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional, isto é, quais são os motivos reais para que, durante décadas, se pudessem dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso? Em segundo lugar, o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação – não no sentido de que sempre se pode aprender, dos erros, o que não se deve fazer, mas sim refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização, ou seja, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana? Começaremos com a segunda questão.

III

        Uma crise na educação em qualquer ocasião originaria séria preocupação, mesmo se não refletisse, como ocorre no presente caso, uma crise e uma instabilidade mais gerais na sociedade moderna. A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, [fim da p. 234] objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação. Esse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo, e não se aplica às formas de vida animais; corresponde a um duplo relacionamento, o relacionamento com o mundo, de um lado, e com a vida, de outro. A criança partilha o estado de vir a ser com todas as coisas vivas; com respeito à vida e seu desenvolvimento, a criança é um ser humano em processo de formação, do mesmo modo que um gatinho é um gato em processo de formação. Mas a criança só é nova em relação a um mundo que existia antes dela, que continuará após sua morte e no qual transcorrerá sua vida. Se a criança não fosse um recém-chegado nesse mundo humano, porém simplesmente uma criatura viva ainda não concluída, a educação seria apenas uma função da vida e não teria que consistir em nada além da preocupação para com a preservação da vida e do treinamento e na prática do viver que todos os animais assumem em relação a seus filhos.

        Os pais humanos, contudo, não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a concepção e o nascimento, mas simultaneamente os introduziram em um mundo. Eles assumem na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo, pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem; com efeito podem entrar em mútuo conflito. A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração.

        Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a família, cujos membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes. Essas quatro paredes, entre as quais a vida familiar privada [fim da p. 235] das pessoas é vivida, constitui um escudo contra o mundo e, sobretudo, contra o aspecto público do mundo. Elas encerram um lugar seguro, sem o que nenhuma coisa viva pode medrar. Isso é verdade não somente para a vida da infância, mas para a vida humana em geral. Toda vez que esta é permanentemente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança, sua qualidade vital é destruída. No mundo público, comum a todos, as pessoas são levadas em conta, e assim também o trabalho, isto é, o trabalho de nossas mãos com que cada pessoa contribui para com o mundo comum; porém a vida qua vida não interessa aí. O mundo não lhe pode dar atenção, e ela deve ser oculta e protegida do mundo.

        Tudo que vive, e não apenas a vida vegetativa, emerge das trevas, e, por mais forte que seja sua tendência natural a orientar-se para a luz, mesmo assim precisa da segurança da escuridão para poder crescer. Esse, com efeito, pode ser o motivo por que com tanta freqüência crianças de pais famosos não dão em boa coisa. A fama penetra as quatro paredes e invade seu espaço privado, trazendo consigo, sobretudo nas condições de hoje, o clarão implacável do mundo público, inundando tudo nas vidas privadas dos implicados, de tal maneira que as crianças não têm mais um lugar seguro onde possam crescer. Ocorre, porém, exatamente a mesma destruição do espaço vivo real toda vez que se tenta fazer das próprias crianças um espécie de mundo. Entre esses grupos de iguais surge então uma espécie de vida pública, e, sem levar absolutamente em conta o fato de que esta não é uma vida pública real e de que toda a empresa é de certa forma uma fraude, permanece o fato de que as crianças – isto é, seres humanos em processo de formação, porém ainda não acabados – são assim forçadas a se expor à luz da existência pública.

        Parece óbvio que a educação moderna, na medida em que procura estabelecer um mundo de crianças, destrói as condições necessárias ao desenvolvimento e crescimento vitais. Contudo, choca-nos como algo realmente estranho que tal dano ao desenvolvimento da criança seja o resultado da educação moderna, pois [fim da p. 236] esta sustentava que seu único propósito era servir a criança, rebelando-se contra os métodos do passado por não levarem suficientemente em consideração a natureza íntima da criança e suas necessidades. “O Século da Criança”, como podemos lembrar, iria emancipar a criança e liberá-la dos padrões originários de um mundo adulto. Como pôde então acontecer que as mais elementares condições de vida necessárias ao crescimento e desenvolvimento da criança fossem desprezadas ou simplesmente ignoradas? Como pôde acontecer que se expusesse a criança àquilo que, mais que qualquer outra coisa, caracterizava o mundo adulto, o seu aspecto público, logo após se ter chegado à conclusão de que o erro em toda a educação passada fora ver a criança como não sendo mais que um adulto em tamanho reduzido?

        O motivo desse estranho estado de coisas nada tem a ver, diretamente, com a educação; deve antes ser procurado nos juízos é preconceitos acerca da natureza da vida privada e do mundo público e sua relação mútua, característicos da sociedade moderna desde o início dos tempos modernos e que os educadores, ao começarem relativamente tarde a modernizar a educação, aceitaram como postulados evidentes por si mesmos, sem consciência das conseqüências que deveriam acarretar necessariamente para a vida da criança. É uma peculiaridade de nossa sociedade, de modo algum uma coisa necessária, considerar a vida, isto é, a vida terrena dos indivíduos e da família, como o bem supremo; por esse motivo, em contraste com todos os séculos anteriores, ela emancipou essa vida e todas as atividades envolvidas em sua preservação e enriquecimento do ocultamento da privatividade expondo-a à luz do mundo público. É esse o sentido real da emancipação dos trabalhadores e das mulheres, não como pessoas, sem dúvida, mas na medida em que preenchem uma função necessária no processo vital da sociedade.

        Os últimos a serem afetados por esse processo de emancipação foram as crianças, e aquilo mesmo que significara uma verdadeira liberação para os trabalhadores e mulheres – pois eles não eram somente traba- [fim da p. 237] lhadores e mulheres, mas também pessoas, tendo portanto direito ao mundo público, isto é, a verem e serem vistos, a falar e serem ouvidos – constituiu abandono e traição no caso das crianças, que ainda estão no estágio em que o simples fato da vida e do crescimento prepondera sobre o fator personalidade. Quanto mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre aquilo que é particular e aquilo que é público, entre o que somente pode vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz do mundo público, ou seja, quanto mais ela introduz entre o privado e o público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e vice-versa, mais difíceis torna as coisas para suas crianças, que pedem, por natureza, a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu amadurecimento.

        Por mais graves que possam ser essas violações das condições para o crescimento vital, é certo que elas não foram de todo intencionais; o objetivo central de todos os esforços da educação moderna foi o bem-estar da criança, fato esse que evidentemente não se torna menos verdadeiro caso os esforços feitos nem sempre tenham logrado êxito em promover o bem-estar da maneira esperada. A situação é inteiramente diversa na esfera das tarefas educacionais não mais dirigidas para a criança, porém à pessoa jovem, ao recém-chegado e forasteiro, nascido em um mundo já existente e que não conhece. Tais tarefas são basicamente, mas não exclusivamente, responsabilidade das escolas; competem à sua alçada o ensino e a aprendizagem, e o fracasso neste campo é o problema mais urgente da América atualmente. O que jaz na base disso?

        Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola. No entanto, a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. Aqui, o comparecimento não é exigido pela família, e sim pelo Estado, isto é, o mundo público, e assim, em relação à crian- [fim da p. 238] ça, a escola representa em certo sentido o mundo, embora não seja ainda o mundo de fato. Nessa etapa da educação, sem dúvida, os adultos assumem mais uma vez uma responsabilidade pela criança, só que, agora, essa não é tanto a responsabilidade pelo bem-estar vital de uma coisa em crescimento como por aquilo que geralmente denominamos de livre desenvolvimento de qualidades e talentos pessoais. Isto, do ponto de vista geral e essencial, é a singularidade que distingue cada ser humano de todos os demais, a qualidade em virtude da qual ele não é apenas um forasteiro no mundo, mas alguma coisa que jamais esteve aí antes.

        Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova, deve-se cuidar para que essa coisa nova chegue à fruição em relação ao mundo como ele é. Em todo caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é. Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.

        Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assunte a forma de autoridade. A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa. Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: – Isso é o nosso mundo. [fim da p. 239]

        Pois bem: sabemos todos como as coisas andam hoje em dia com respeito à autoridade. Qualquer que seja nossa atitude pessoal face a este problema, é óbvio que, na vida pública, e política, a autoridade ou não representa mais nada – pois a violência e o terror exercidos pelos países totalitários evidentemente nada têm a ver com autoridade -, ou, no máximo, desempenha um papel altamente contestado. Isso, contudo, simplesmente significa, em essência, que as pessoas não querem mais exigir ou confiar a ninguém o ato de assumir a responsabilidade por tudo o mais, pois sempre que a autoridade legítima existiu ela esteve associada com a responsabilidade pelo curso das coisas no mundo. Ao removermos a autoridade da vida política e pública, pode ser que isso signifique que, de agora em diante, se exija de todos uma igual responsabilidade pelo rumo do mundo. Mas isso pode também significar que as exigências do mundo e seus reclamos de ordem estejam sendo consciente ou inconscientemente repudiados; toda e qualquer responsabilidade pelo mundo está sendo rejeitada, seja a responsabilidade de dar ordens, seja a de obedecê-las. Não resta dúvida de que, na perda moderna da autoridade, ambas as intenções desempenham um papel e têm muitas vezes, simultanea e inextricavelmente, trabalhado juntas.

        Na educação, ao contrário, não pode haver tal ambigüidade face à perda hodierna de autoridade. As crianças não podem derrubar a autoridade educacional, como se estivessem sob a opressão de uma maioria adulta – embora mesmo esse absurdo tratamento das crianças como urna minoria oprimida carente de libertação tenha sido efetivamente submetido a prova na prática educacional moderna. A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças.

        Evidentemente, há uma conexão entre a perda de autoridade na vida pública e política e nos âmbitos privados e pré-políticos da família e da escola. Quanto mais radical se torna a desconfiança face a autoridade na esfera pública, mais aumenta, naturalmente, a pro- [fim da p. 240] babilidade de que a esfera privada não permaneça incólume. Há o fato adicional, muito provavelmente decisivo, de que há tempos imemoriais nos acostumamos, em nossa tradição de pensamento político, a considerar a autoridade dos pais sobre os filhos e de professores sobre alunos como o modelo por cujo intermédio se compreendia a autoridade política. É justamente tal modelo, que pode ser encontrado já em Platão e Aristóteles, que confere tão extraordinária ambigüidade ao conceito de autoridade em política. Ele se baseia sobretudo em uma superioridade absoluta que jamais poderia existir entre adultos e que, do ponto de vista da dignidade humana, não deve nunca existir. Em segundo lugar, ao seguir o modelo da criação dos filhos, baseia-se em uma superioridade puramente temporária, tornando-se, pois, autocontraditório quando aplicado a relações que por natureza não são temporárias – como as relações entre governantes e governados. Decorre da natureza do problema – isto é, da natureza da atual crise de autoridade e da natureza de nosso pensamento político tradicional – que a perda de autoridade iniciada na esfera política deva terminar na esfera privada; obviamente não é acidental que o lugar em que a autoridade política foi solapada pela primeira vez, isto é, a América, seja onde a crise moderna da educação se faça sentir com maior intensidade.

        A perda geral de autoridade, de fato, não poderia encontrar expressão mais radical do que sua intrusão na esfera pré-política, em que a autoridade parecia ser ditada pela própria natureza e independer de todas as mudanças históricas e condições políticas. O homem moderno, por outro lado, não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo, para seu desgosto com o estado de coisas, que sua recusa a assumir, em relação às crianças, a responsabilidade por tudo isso. É como se os pais dissessem todos os dias: – Nesse mundo, mesmo nós não estamos muito a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios para nós. Vocês devem tentar entender isso do jeito que puderem; em todo [fim da p. 241] caso, vocês não têm o direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por vocês.

        Essa atitude, é claro, nada tem a ver com o desejo revolucionário de uma nova ordem no mundo – Novus Ordo Seclorum – que outrora animou a América; mais que isso, é um sintoma daquele moderno estranhamento do mundo visível em toda parte mas que se apresenta em forma particularmente radical e desesperada sob as condições de uma sociedade de massa. É verdade que as experiências pedagógicas modernas têm assumido – e não só na América – poses muito revolucionárias, o que ampliou até certo ponto a dificuldade de identificar a situação com clareza, provocando certo grau de confusão na discussão do problema. Em contradição com todos esses comportamentos, continua existindo o fato inquestionável de que, durante o período em que a América foi realmente animada por este espírito revolucionário, ela jamais sonhou iniciar a nova ordem pela educação, permanecendo, ao contrário, conservadora em matéria educacional.

        A fim de evitar mal-entendidos: parece-me que o conservadorismo, no sentido de conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa, – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo. Mesmo a responsabilidade ampla pelo mundo que é aí assumida implica, é claro, uma atitude conservadora. Mas isso permanece válido apenas no âmbito da educação, ou melhor, nas relações entre adultos e crianças, e não no âmbito da política, onde agimos em meio a adultos e com iguais. Tal atitude conservadora, em política – aceitando o mundo como ele é, procurando somente preservar o status quo -, não pode senão levar à destruição, visto que o mundo, tanto no todo como em parte, é irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo, a menos que existam seres humanos determinados a intervir, a alterar, a criar aquilo que é novo. As palavras de Hamlet: – “The time is out of joint. O cursed spite that ever I was born to set it right” [“O tempo está fora dos eixos. O ódio maldito ter nascido para colocá-lo em ordem”] – são mais [fim da p. 242] ou menos verídicas para cada nova geração, embora tenham adquirido talvez desde o início de nosso século, uma validez mais persuasiva do que antes.

        Basicamente, estamos sempre educando para um mundo que ou já está fora dos eixos ou para aí caminha, pois é essa a situação humana básica, em que o mundo é criado por mãos mortais e serve de lar aos mortais durante tempo limitado. O mundo, visto que feito por mortais, se desgasta, e, dado que seus habitantes mudam continuamente, corre o risco de tornar-se mortal como eles. Para preservar o mundo contra a mortalidade de seus criadores e habitantes, ele deve ser, continuamente, posto em ordem. O problema é simplesmente educar de tal modo que um por-em-ordem continue sendo efetivamente possível, ainda que não possa nunca, é claro, ser assegurado. Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura. Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição.

IV

        A verdadeira dificuldade na educação moderna está no fato de que, a despeito de toda a conversa da moda acerca de um novo conservadorismo, até mesmo aquele mínimo de conservação e de atitude conservadora sem o qual a educação simplesmente não é possível se torna, em nossos dias, extraordinariamente difícil de atingir. Há sólidas razões para isso. A crise da autoridade na educação guarda a mais estreita conexão com a crise da tradição, ou seja, com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado. É sobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto [fim da p. 243] da crise moderna, pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado. Durante muitos séculos, isto é, por todo o período da civilização romano-cristã, não foi necessário tomar consciência dessa qualidade particular de si próprio, pois a reverência ante o passado era parte essencial da mentalidade romana, e isso não foi modificado ou extinto pelo Cristianismo, mas apenas deslocado sobre fundamentos diferentes.

        Era da essência da atitude romana (embora de maneira alguma isso fosse verdadeiro para qualquer civilização, ou mesmo para a tradição ocidental como um todo) considerar o passado qua passado como um modelo, os antepassados, em cada instância, como exemplos de conduta para seus descendentes; crer que toda grandeza jaz no que foi, e, portanto, que a mais excelente qualidade humana é a idade provecta; que o homem envelhecido, visto ser já quase um antepassado, pode servir de modelo para os vivos. Tudo isso se põe em contradição não só com nosso mundo e com a época moderna, da Renascença em diante, como, por exemplo, com a atitude grega diante da vida. Quando Goethe disse que envelhecer é “o gradativo retirar-se do mundo das aparências”, sua observação era feita no espírito dos gregos, para os quais ser e aparência coincidiam. A atitude romana teria sido que justamente ao envelhecer e ao desaparecer gradativamente da comunidade dos mortais o homem atinge sua forma mais característica de existência, ainda que, em relação ao mundo das aparências, esteja em vias de desaparecer; isto porque somente agora ele se pode acercar da existência na qual ele será uma autoridade para os outros.

        Contra o pano de fundo inabalado de uma tradição dessa natureza, na qual a educação possui uma função política (e esse caso era único), é de fato relativamente fácil fazer direito as coisas em matéria de educação, sem sequer fazer uma pausa para apreciar o que se está fazendo, tão completo é o acordo entre o ethos específico do princípio pedagógico e as convicções éticas e morais básicas da sociedade como um todo. Nas palavras de Políbio, educar era simplesmen- [fim da p. 244] te “fazer-vos ver que sois inteiramente dignos de vossos antepassados”, e nesse mister o educador podia ser um “companheiro de luta” um “companheiro de trabalho” por ter também, embora em nível diverso, atravessado a vida com os olhos grudados no passado. Companheirismo e autoridade não eram nesse caso senão dois aspectos da mesma substância, e a autoridade do mestre arraigava-se firmemente na autoridade inclusiva do passado enquanto tal. Hoje em dia, porém, não nos encontramos mais em tal posição; não faz muito sentido agirmos como se a situação fosse a mesma, como se apenas nos houvéssemos como que extraviado do caminho certo, sendo livres para, a qualquer momento, reencontrar o rumo. Isso quer dizer que não se pode, onde quer que a crise haja ocorrido no mundo moderno, ir simplesmente em frente, e tampouco simplesmente voltar para trás. Tal retrocesso nunca nos levará a parte alguma, exceto à mesma situação da qual a crise acabou de surgir. O retorno não passaria de uma repetição da execução – embora talvez em forma diferente, visto não haver limites às possibilidades de noções absurdas e caprichosas que são ataviadas como a última palavra em ciência. Por outro lado, a mera e irrefletida perseverança, seja pressionando para frente a crise, seja aderindo à rotina que acredita bonachonamente que a crise não engolfará sua esfera particular de vida, só pode, visto que se rende ao curso do tempo, conduzir à ruína; para ser mais precisa, ela só pode aumentar o estranhamento do mundo pelo qual já somos ameaçados de todos os flancos. Ao considerar os princípios da educação temos de levar em conta esse processo de estranhamento do mundo; podemos até admitir que nos defrontamos aqui presumivelmente com um processo automático, sob a única condição de não esquecermos que está ao alcance do poder do pensamento e da ação humana interromper e deter tais processos.

        O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido [fim da p. 245] coeso pela tradição. Isso significa, entretanto, que não apenas professores e educadores, porém todos nós, na medida em que vivemos em um mundo junto à nossas crianças e aos jovens, devemos ter em relação a eles uma atitude radicalmente diversa da que guardamos um para com o outro. Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos demais, e acima de tudo do âmbito da vida pública e política, para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral, não devendo reclamar uma aplicação generalizada no mundo dos adultos.

        Na prática, a primeira conseqüência disso seria urna compreensão bem clara de que a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver. Dado que o mundo é velho, sempre mais que elas mesmas, a aprendizagem volta-se inevitavelmente para o passado, não importa o quanto a vida seja transcorrida no presente. Em segundo lugar, a linha traçada entre crianças e adultos deveria significar que não se pode nem educar adultos nem tratar crianças como se elas fossem maduras; jamais se deveria permitir, porém, que tal linha se tornasse uma muralha a separar as crianças da comunidade adulta, como se não vivessem elas no mesmo mundo e como se a infância fosse um estado humano autônomo, capaz de viver por suas próprias leis. É impossível determinar mediante uma regra geral onde a linha limítrofe entre a infância e a condição adulta recai, em cada caso. Ela muda freqüentemente, com respeito à idade, de país para país, de uma civilização para outra e também de indivíduo para indivíduo. A educação, contudo, ao contrário da aprendizagem, precisa ter um final previsível. Em nossa civilização esse final coincide provavelmente com o diploma colegial, não com a conclusão do curso secundário, pois o treinamento profissional nas universidades ou cursos técnicos, embora sempre tenha algo a ver com a educação, é, não obstante, em si mesmo uma espécie de especialização. Ele não visa mais a introduzir o jovem no mundo como um todo, mas sim em um segmento limitado e particular dele. Não se pode educar sem ao mesmo tempo [fim da p. 246] ensinar; uma educação sem aprendizagem é vazia e portanto degenera, com muita facilidade, em retórica moral e emocional. É muito fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender durante o dia todo sem por isso ser educado. Tudo isso são detalhes particulares, contudo, que na verdade devem ser entregues aos especialistas e pedagogos.

        O que nos diz respeito, e que não podemos portanto delegar à ciência específica da pedagogia, é a relação entre adultos e crianças em geral, ou, para colocá-lo em termos ainda mais gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento. A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. [fim da p. 247]

 

O ESTADO SOBERANO – Thomas Hobbes

O ESTADO SOBERANO É UM DEUS MORTAL – LEVIATÃ de Thomas Hobbes

 

Leviatã

 

 

O único meio para fundar um poder comum que seja capaz de defender os homens da agressão estrangeira e das injúrias recíprocas – dando-lhes segurança para que possam nutrir-se e viver satisfeitos com os seus engenhos e com os frutos da terra – é conferir todo o seu poder e toda a sua força a um homem ou a uma assembleia de homens que possa reduzir todas as suas vontades, com a pluralidade de vozes, a uma única vontade.

O que significa encarregar um homem a uma assembleia de homens de representar os indivíduos e cada indivíduo se reconhecer como autor de tudo quanto o seu representante fizer ou mandar fazer no que diz respeito à paz e à salvação comuns, submetendo assim sua própria vontade à vontade dele e todo juízo ao juízo dele.

            Isso é mais do que um consenso ou um acordo. É a unidade verdadeira de todos em uma única e idêntica pessoa, realizada por meio do pacto entre os homens, como se cada um dissesse ao outro: eu autorizo e cedo o direito que tenho de governar a mim mesmo a este homem ou a esta assembleia de homens, sob a condição de que tu também lhe cedas o teu direito e autorizes igualmente as suas ações.

            Feito isso, a multidão reunida em um único indivíduo passa a ser chamada de Estado, em latim, civitas. Esta é a origem do grande Leviatã, ou melhor (para falar com maior reverência), do Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, a nossa paz e a nossa defesa.

            De fato, por meio da autoridade que cada indivíduo concedeu ao Estado, é tanto o poder e tanta a força que lhe foram conferidos que pelo terror que inspira é capaz de conformar a vontade de todos à paz interna e à recíproca ajuda contra os inimigos externos.

            Nisso consiste a essência do Estado, que (desejando-se defini-lo) é um indivíduo de cujos atos cada membro de uma grande multidão, com base em pactos recíprocos, se considera autor, para que esse indivíduo possa usar a força e os meios de todos do modo que julgar mais vantajoso para a paz e a defesa comum. Aquele que desempenha esse papel é chamado de soberano, e se diz que tem poder soberano; todos os outros são súditos.

            Esse poder soberano pode ser alcançado de duas maneiras. A primeira delas é dada pela força natural, como quando um homem obriga seus filhos e os filho destes a se submeterem à sua autoridade, posto que é capaz de destruí-los caso se recusem a fazê-lo; ou como quando por meio da guerra, submete os seus inimigos a sua vontade, e sob essa condição preserva-lhes a vida. A segunda é dada quando os homens concordam entre si em se submeter a um homem ou a uma assembleia de homens, voluntariamente, na esperança de estarem assim protegidos contra os demais. Este último pode ser chamado um Estado político ou Estado por instituição, e o anterior, Estado por aquisição.

A POSIÇÃO DO HOMEM NA POLÍTICA – Karl Jaspers

A POSIÇÃO DO HOMEM NA POLÍTICA (In.: Introdução ao Pensamento Filosófico)

Karl Jaspers

 

1. A política é uma tensão entre dois polos: a violência possível e a livre coexistência.

Contra a força, faz-se necessária a resistência pela força, a menos que se esteja disposto a admitir a própria escravização ou a própria destruição. A livre coexistência cria uma comunidade por meio de instituições e de leis. A política da força e a política da parlamentação opõem-se por natureza: a combinação de urna e outra tem constituído a prática política até os dias de hoje, e, talvez por tempo indeterminado.

Distingue-se entre política interna e política externa. Saber qual delas predomina depende da situação de uma comunidade frente a outras. Ocorre, por vezes, que as duas formas se entrelaçam. A política externa é produto da política de força, para a qual todo discurso é um estratagema. Contudo, graças a tratados e ao direito internacional, a política externa tende a um ponto em que estará suficientemente transformada para excluir a violência. Quanto à política interna, assume ela certos aspectos da política externa quando, em meio à luta, os políticos recorrem à trapaça, à mentira, à conspiração e à injustiça, até que estoure a guerra civil ou que um dos grupos se deixe dominar pelo outro.

É ilusão acreditar que o poder político é o poder da violência. Grandes eventos históricos mostram que pode haver ação e poder sem recurso à força. Por outro lado, é também ilusório ver a política apenas como edificação da sociedade em clima de liberdade, enxergando a violência como anomalia de sentido oposto ao da política.

Prova do contrário é o fato de que, nos bastidores, a força permaneceu sempre como sanção possível. Quando a opinião pública tende a esquecê-lo, como nos calmos tempos anteriores a 1914, a violência não tarda a irromper e a exibir sua majestade sombria.

2. A história da política nos amedronta; mostra os homens como demônios. Desde os primórdios se manifesta o instinto de dominar, tiranizar, matar, perseguir, torturar.

Ocorre, por vezes, que esse instinto se recolha ou pareça domado. Mas é ilusão.

Sem embargo, sejam o que forem, os homens estão obrigados a viver juntos. É uma condição para sobreviverem. Desde o princípio, por consequência, os homens viveram em comunidades nas quais se ajudam uns aos outros, pelas quais se defendem uns dos outros e das quais saem uns e outros — mas não todos — para a conquista e para a pilhagem.

Espanta ver como o homem é violento e obtuso; é surpreendente que os homens tenham chegado a coisa diferente de simples hordas de bandidos. E, contudo, vieram a criar ordens políticas, Estados de direito, comunidades de cidadãos. Para que isso tenha sido possível, hão de ter agido poderosas forças de outra origem.

As sociedades humanas jamais triunfam dos instintos de violência. Consequentemente, são sempre injustas e devem aprimorar-se constantemente. A par disso, como as situações históricas não se repetem, impõe-se que as sociedades estejam em contínua evolução. Não podemos instalar-nos no mundo de maneira definitiva. Os homens nada fazem perfeito. Como diz Kant com indulgência: “em madeira torta não se pode esculpir algo que seja inteiramente reto”.

Da luta entre o caos da existência e os princípios de ordem nasce a História.

3. Por essas razoes, a política é o mais importante dos instrumentos no que diz respeito à nossa coexistência no mundo. Os homens de Estado são tidos em alta conta, em razão do poder de que dispõem e porque atuam sobre o destino de muitos. Homens e nações os aclamam ou maldizem. Eles ganham estatura de enormes proporções. Mesmo quando semeiam infelicidade e destruição não caem no olvido. Os homens e suas ideias políticas podem ser avaliados, se conhecermos os nomes dos estadistas a que dedicam admiração.

Quanto a nós, entendemos que o homem de Estado é grande quando se reconhece responsável peia liberdade.

Essa grandeza não consiste no poder cruel de um tigre de alma humana, como César, nem no poder de destruição de um inseto astuto, misteriosamente afinado com as situações de poder como Hitler. Obedecendo a César, uma grande nação teve um último instante de grandeza, fazendo surgir ao mesmo tempo os inimigos que o matariam em nome da liberdade. Hitler nos rebaixou — ao conjunto do povo alemão e a cada um de nós em particular e, particularmente, aos que o seguiram — sem que surgisse alguém que, inspirado pelo ideal de liberdade política, fosse capaz de destruí-lo.

O senso de responsabilidade, próprio dos grandes estadistas como, digamos, Sólon e Péricles, os leva a conciliar as duas realidades, a força e a liberdade, pela razão não violenta.

Subsistir pela violência exige a vilania e a mentira: a razão exige a franqueza e o respeito aos compromissos. Para subsistir, é preciso que se assuma responsabilidade pelas consequências de uma ação política praticada no interesse do poder nacional. A razão implica também o sentido moral que só admite o êxito, a violência e o poder que se colocam a serviço da missão supra política do homem.

Do ponto de vista da pura afirmação política, um grande estadista só pode ser acusado de irresponsabilidade no caso de preferir desdenhar o êxito e o poder a sacrificar sua integridade. Não há padrão universal. A maneira como o caráter se integra à responsabilidade pelas consequências da ação política e a maneira como o senso de responsabilidade passa a constituir caráter corresponde, em cada situação, a uma decisão histórica e não a uma média que se possa determinar.

O político de baixo nível é o que não experimenta aquela tensão. Segue a linha de menor resistência e faz o que promete maior vantagem. O grande político é o que, em tensão, encontra a forma de agir que lhe permite auto afirmar-se, elevando-se a seu povo e a si mesmo à dignidade do Humano. Ele não pode abandonar-se à Realpolitik, ao oportunismo. Não admite comprometer moralmente a comunidade nacional pela prática de atos repreensíveis, ainda que, de momento, pareçam convenientes. Por meio de seu próprio agir, educa seus concidadãos. Não se agarra ao poder a qualquer preço, quando sua consciência política e moral lhe proíbe subscrever o que é contrário à dignidade e aos interesses da nação.

4. O objetivo da política pode ser resumido em uma frase: com liberdade política, o homem se torna autenticamente ele próprio, livre para ordenar os negócios internos da nação e para afirmar-se face ao exterior.

A questão supra política à qual está subordinada toda política é a seguinte: como deve a política orientar-se para merecer nosso total assentimento? A resposta está na proposição que ora repito: só a liberdade política pode fazer, de nós, homens autênticos.

A violência deve ser abolida pela política, no interesse da dominação do direito e da liberdade pessoal. A esta um só limite se coloca: pode coexistir com a liberdade dos demais.

A política pretende subjugar a violência por meio do debate, do pacto, da busca de uma vontade comum através de caminhos legais. Para que a tal resultado se chegue, é preciso contar com certa espécie de político. Esse político não deve aspirar à ditadura, porque não se interessa por governar escravos. Deve pretender poder temporário, na medida em que mereça a confiança do povo — confiança de cidadãos e não de súditos — e deve inclinar-se pela renúncia, tão logo decaia daquela confiança. Deve odiar a força, sendo demagogo no sentido literal da palavra: educador do povo. Em situações concretas, deve traduzir os verdadeiros desejos do povo, expondo fatos e razões, de sorte que o próprio povo, examinando os argumentos oferecidos, possa reconhecê-los como seus e encher-se de entusiasmo pela decisão tomada. Após milênios, palavras e feitos desse tipo de homem continuam a merecer lembrança.

5. Não cabe supor que a liberdade política brote do nada. O primeiro estágio da história foi de liberdade apolítica, viva. Longe de ser vazio, o desejo de liberdade, preso aos laços comunais, conservava a substância da tradição social. Como se teria originado essa liberdade ainda inconsciente de si mesma é mistério incompreensível. Falar de caracteres raciais ou étnicos não é uma explicação e rouba grandeza àquela liberdade.

A liberdade na polis grega apoiou-se no desejo de liberdade acalentado pelos gregos desde Homero e dos jônios; o primeiro momento de culminância dessa liberdade confundiu-se com a figura singular de Sólon e à sua perfeição chegou-se na guerra contra os persas e consequências daí advindas. A vida livre dos camponeses suíços constituiu-se na premissa da Confederação do século XIII que, num documento baseado em princípios admiravelmente simples, definiu, ao mesmo tempo, a liberdade interna e a aceitação, sem reserva, de qualquer sacrifício para repulsa de agressão externa. A liberdade norte-americana foi expressão do caráter dos “Pilgrim Fathers” e da maneira de vida de diversas comunidades; foi na rebeldia contra a Inglaterra que se estruturaram os primeiros Estados e, depois, a Federação. Em todos os lugares, foi sempre a posteriori que se desenvolveram as doutrinas através das quais os fundadores e seus continuadores deixavam assentado o que desejavam preservar.

Afirmou Kant que os eventos mais importantes da História moderna foram as lutas de independência suíça, holandesa e inglesa. Dentro do mesmo espírito, mas com originalidade renovada, seguiu-se a luta dos norte-americanos. Admiramo-nos diante da coragem, do ardor, da moderação, da prudência de todos esses heróis da liberdade que encontravam em si mesmos o impulso necessário para se fazerem mais inteligentes e mais prontos ao sacrifício, superiores às massas que só escutavam a voz da violência.

Em cada uma de suas manifestações, essa liberdade genuína durou apenas um instante; para nós, os pósteros, o fato permanece como exemplo e estímulo.

6. Terrível é que a liberdade abrigue, em si mesma, o germe da corrupção.

O mundo da liberdade política estará perdido se não aparecerem, a cada geração e por meio da educação de homens livres, os grandes estadistas. Estes, através de todos os seus atos, estão lutando pela liberdade, em meio às vicissitudes da liberdade. Conhecem os perigos que os rodeiam. Consideram compensador o risco enfrentado, pois está em jogo o mais precioso bem da humanidade. São dotados de coragem, sagacidade, paciência. Deles se pode dizer o que se disse de Péricles: desde que passou a governar Atenas, nunca mais o viram rir.

Os políticos são diferentes. Oportunistas, facciosos, forjadores de mentiras e de intrigas. Inescrupulosos, agem, em nome da liberdade, contra a liberdade. Envolvidos, escapam pela via de palavra falsa ou espirituosa. Ofendem, pela maneira de portar-se, o Parlamento a que pertencem e que, sendo-lhes afim, parece não dar-se conta das ofensas e nem lhes ocorre expulsar esses conspurcadores do espírito da política. Com palavras sentimentais, eles representam a comédia da seriedade. São coveiros da liberdade.

Carentes de vocação, esses políticos encaram suas funções como um simples emprego, vantajoso sob todos os aspectos, com bom salário, direito a aposentadoria e sem qualquer risco. Não pensam em termos de responsabilidade. Esse o motivo por que, incapazes de reação a qualquer perigo, submetem-se, como em 1933, a qualquer força que lhes ofereça aparente segurança ou proteção. Nada foi mais humilhante para os políticos alemães e para a nação representada — e também nada foi mais merecido — do que o desprezo que por eles mostraram Hitler e Goebbels em discursos arrasadores.

O mundo livre é, sob esse ângulo, um espetáculo de ambigüidades. Nós, povos livres, estamos ainda longe de ser politicamente livres. A prosperidade, o conservantismo, a agitação pela agitação não bastam para fazer surgir a liberdade. Diminui a aristocracia dos cidadãos esclarecidos. A divisão das responsabilidades gera a irresponsabilidade. A democracia degenera em oligarquia de partidos. O que se tem por cultura não passa de bolhas de sabão em salões literários. O espírito perde densidade.

Como consequência, as nações não se sentem ameaçadas pelos tremendos perigos que sobre elas pesam. Quando muito experimentam receio, que se desvanece tão logo se afasta o perigo imediato. Poucas percebem para que destino as está conduzindo a liberdade — a elas próprias e ao mundo.

7. Esse estado de coisas, que parece tão solidamente fundamentado na prosperidade, pode alterar-se bruscamente quando massas e intelectuais, sem raízes mais firmes, amadurecem para a sociedade totalitária. Quando, por não mais compreendê-la, olha-se a liberdade como coisa exterior, já se tomou o caminho da escravidão, no clima de futilidades de um mundo sem fé. É como se, em meio à agitação política e intelectual, a Alemanha viesse, há décadas, cavando a tumba de sua liberdade; é como se, após o bem sucedido resgate da Alemanha Ocidental, que teve lugar graças a estrangeiros, perigo semelhante a ameaçasse agora, vindo do interior. Mas esse perigo não está ameaçando todo o Ocidente?

8. Diante dos sinistros sinais de nossos tempos, as objeções fundamentais que se fazem à possibilidade mesma da liberdade ganham sedução nova.

Não é a liberdade política uma utopia? Não se trata de um simples estado de espírito, que se vem repetindo em alguns ocidentais, desde a época dos gregos? Não é a liberdade rejeitada, na prática, pela maioria dos homens do Ocidente e por todo o resto da humanidade, que a ignora?

Eu não gostaria de esquecer os homens que jamais conheceram e jamais se empenharam por liberdade política, atingindo, entretanto, no campo do pensamento metafísico, da poesia e da arte, profundidade que nos parece miraculosa.

Não me agradaria também negar a grandeza de certos soberanos da China e da Índia ou de civilizações mais antigas, desde a sumeriana. Mas, ainda quando nos julgamos próximos delas, há sempre algo que, em tais civilizações, permanece estranho e antipático a nossos olhos. Em nossa Idade Média encontramos também grandes personagens como que inconscientes da própria grandeza (e, por isso mesmo, tanto mais impressionantes), mas entre elas e nós parece colocar-se um abismo que as torna ainda mais inquietantes. Isso jamais acontece, quando a liberdade política é desejada, concretizada, ou quando sua ausência é dolorosamente sentida.

Não podemos, por outro lado, afirmar que a História assinale contínuo progresso da liberdade. No mundo ocidental, desde Israel e os gregos, desde a polis e a república romana, desde as comunas e os camponeses livres da Idade Média e nos países modernos, herdeiros dessas tradições, tem havido poderosas erupções de liberdade, que sempre nos surpreendem porque nos lembram ilhas num oceano de servidão, ilhas infinitamente preciosas, mas sempre ameaçadas.

A liberdade política só floriu em círculos restritos. Em países isolados, como a Islândia antiga, ela se tornou realidade grandiosa, embora não houvesse atingido a estatura espiritual que teve na Grécia, na Holanda ou na Inglaterra. Em todas as partes, contudo, a liberdade não tardou a fanar. Na imensa maioria dos povos e do Estados, a realidade se opõe à liberdade,

Os fatos parecem apoiar a mais séria das objeções: a liberdade é impossível porque exige demasiado do homem. A situação inevitável, poderosamente desafiadora, mas também exposta aos maiores perigos, é a seguinte: para tornar-se verdadeiramente homem, o homem deve ser livre, o que ele não pode ser como partícula humana em meio à massa de um povo.

9. A partir desta objeção deduz-se a necessidade de uma autoridade incontrastável. Que sempre existiu. Hoje em dia esse tipo de autoridade está a ponto de conceder à Rússia e à China a hegemonia no mundo.

Em verdade, se se repele a liberdade política, só resta o autoritarismo, o domínio da minoria sobre a maioria, em nome de uma autoridade que todos devem reconhecer.

Mas a esse autoritarismo opõe-se uma verdade indiscutível: são sempre homens que governam homens. No mundo, jamais encontramos Deus ou a verdade absoluta. São homens que, em nome de Deus ou da verdade absoluta, reclamam para si a autoridade.

Não há por que depositar fé nessa autoridade. Sob todas as suas formas, ela se desacredita pela prática de atos vergonhosos, baixos, degradantes.

10. Não cabe proceder como se a liberdade se impusesse por si mesma e independesse de nós.

Teria procedência afirmar que a liberdade é inerente à natureza do homem?

Quanto a esse ponto, não há evidência de verdade. Trata-se de uma decisão que diz; respeito ao modo de pensar do homem todo e de cada indivíduo em confronto com seus companheiros de destino político.

Colocados diante de uma encruzilhada, devemos saber para que vivemos, em que sentido podemos construir o futuro, na medida em que isso está a nosso alcance. São a inteligência e a vontade que decidem. Pela reflexão filosófica, elas se identificam a nós.

Por certo que, dentro do clima da liberdade, o risco de perdição é grande e possível a perdição total. Mas, sem liberdade, a perdição é inevitável.

A liberdade política, mantendo consonância perfeita com a inata dignidade do homem, autoriza a esperança. A outra alternativa é, a priori, sem horizontes. Se abandonamos a coragem da razão, sobre a qual se baseia a esperança, desprezamo-nos a nós próprios. E ainda que o homem se visse avassalado pela violência, sua verdade continuaria a ser a de encaminhar-se para a liberdade. Esta não é refutada pelas suas negações, assim como o esplendor da Terra não se anulará, ainda que nosso planeta venha, um dia, a dissolver-se no cosmos.

O DEBATE POLÍTICO – Karl Jaspers

O DEBATE POLÍTICO (in.: Introdução ao Pensamento Filosófico)

Karl Jaspers

 

“Política é destino” — esse dito de Napoleão tornou-se mais aterrorizador desde o surgimento do totalitarismo na era da tecnologia.

Mesmo quando se pretendeu a política, a filosofia sempre teve significado político.

Filosofando, o homem chega a si mesmo. E encontra razão para moldar e julgar politicamente sua associação com os outros homens.

Será este, à guisa de prólogo, o primeiro de uma série de capítulos relativos à política.

Qual a essência de um debate político?

1. Num debate busca-se esclarecimento acerca do objetivo, colhem-se fatos. Tem-se a experiência da opinião contrária. Busca-se convencer. Para tornar sensível o efeito da presença ou ausência da filosofia em tais debates, darei como exemplo uma conversa fictícia entre dois alemães que denominarei A e B.

A. Nosso objetivo último é o de restaurar as fronteiras alemães de 1937, manobrando astuciosamente junto às Grandes Potências.

B. Para mim, a primeira meta a perseguir é o restabelecimento da liberdade política, ainda muito restrita no interior da República Federal Alemã. Isso é tudo que podemos fazer. É a condição necessária para que, solidários com os Estados livres do Ocidente, trabalhemos em prol da autodeterminação dos povos do mundo. Nessa linha e por meio dela, terminaremos por conseguir que se restaure também a liberdade de nossos compatriotas do Este, hoje vivendo sob opressão.

A. Você está perseguindo miragens. Acredita numa solidariedade quimérica. Quando da questão de Suez, os norte-americanos se juntaram aos russos para fazer com que três Estados livres — França, Inglaterra e Israel — se curvassem.

B. Você poderia citar outros fatos igualmente desanimadores. Mas, aquilo com que você sonha é uma quimera menor? A restauração das antigas fronteiras da Alemanha não pode ser obtida por meio de uma política por nós isoladamente praticada. Mas, se o crescente poderio da China levasse, por exemplo, a Rússia a se aliar com o Ocidente, os Estados satélites, inclusive a Alemanha Oriental, ver-se-iam quase que automaticamente libertados e a fronteira passaria a correr ao longo da linha Oder-Neise. O único problema é o seguinte: Qual das quimeras preferir? Qual delas oferece melhor oportunidade? Dito de outra maneira: qual delas propicia melhor expectativa de sobrevivência? Subentende-se que só se pode pensar na sobrevivência da Alemanha dentro do mundo livre. Repito, portanto: o que podemos fazer agora é concretizar a liberdade política no interior das fronteiras da Alemanha Ocidental. E você, que acha que devemos fazer?

A. Devemos repetir infatigavelmente nossa exigência de reunificação da Alemanha.

Não estaremos senão defendendo um direito líquido. A História mostra que pode tornar-se realidade o que é aparentemente absurdo. Readquirimos tal importância que já não somos indiferentes ao mundo.

B. Mas, do ponto de vista político, o que somos nós realmente, mesmo no interior de nossas fronteiras? Na medida em que a massa participa da prosperidade econômica, desinteressa-se da política, de maneira inquietante. Deixamo-nos governar por uma oligarquia de partidos que se nomeia a si mesma e que não se digna a interessar-se pela população, a não ser às vésperas de eleições. Colocar o voto na urna é o único ato político praticado pelo povo e praticado sem maior reflexão. No fundo, isso equivale a decidir, por aclamação, que a mesma oligarquia de partidos continue no poder. Nenhum dos partidos tem um ideário político. Nenhum deles trabalha em favor da liberdade política interna ou em favor da liberdade de pensamento. Nenhum deles procura ajudar o povo a educar-se politicamente. Contudo, a situação é bem diversa da que vigorava sob a República de Weimar. Em nossos dias, o jogo parece provisoriamente isento de riscos. Em verdade, os Estados Unidos da América protegem o Estado contra ataques externos, e o governo o protege contra golpes internos. Disso resulta a restrição, contratualmente assentada, de nossa soberania. Nem interna e nem externamente, o governo tem responsabilidade verdadeira, que pudesse ser exposta à prova do real. Nada lhe pode acontecer. É a consequência da Constituição Provisória, que deu lugar a uma estabilidade inerte.

A. Estamos seguros, portanto. Isso não é bom?

B. Aparentemente, sim. Mas esse estado de coisas é apenas ensaio para o papel que desempenharemos na próxima catástrofe mundial. Ver-se-á, então, se sabemos o que é liberdade política; se recobramos a dignidade perdida em 1933; se sabemos adotar as decisões indispensáveis para preservação da honra e da liberdade — ou se nos comportaremos como em 1933, ano da vergonha e da estupidez política. As condições, contudo, serão inteiramente diversas.

A. Você antevê perigos?

B. Sim. A certeza, por exemplo, de ajuda nuclear por parte dos Estados Unidos da América, na hipótese de uma agressão russa, deixou de ser absoluta. Hoje, os Estados Unidos já desejam que algum tempo se passe entre o ataque russo e a resposta atômica. Face ao risco de destruição pelo desencadeamento de uma guerra nuclear, os Estados Unidos da América, aparentemente, pensarão, antes de tudo e acima de tudo, em si mesmos.

A. Nada podemos fazer, quanto a isso. E, aliás, esses problemas estão ultrapassados, pois vivemos um período tranquilo.

B. Não falemos de tranquilidade. O lato de acreditarmos em tranquilidade sob o pretexto de que atravessamos um instante calmo e de que Berlim não está ameaçada é um grande êxito de Kruchev: ele impeliu o Ocidente para a via das lutas e rivalidades internas a fim de enfraquecê-lo e ter tempo de respirar. Contudo, a longo prazo, a política alemã deveria ser capaz de realizar a grande mudança, que tornaria segura e indissolúvel a aliança com os Estados Unidos da América. Talvez que, apesar de tudo, seja possível conseguir esse resultado.

A. E como?

B. Somente por meio de uma solidariedade completa. Coloquemos em segundo plano a soberania alemã e reconheçamos a superioridade norte-americana. Antes, porém, devemos alcançar uma forma de organização política interna que seja verdadeiramente livre e democrática. Em outras palavras, devemos transformar-nos em um Estado onde o povo participe do pensamento e da ação política e saiba que a liberdade política é um jogo, sempre e em toda parte. Contraporíamos aos Estados Unidos da América argumentos razoáveis e convincentes, mas, em caso de divergência, cederíamos. Assim, com o correr dos anos, os Estados Unidos da América chegariam a perfeita solidariedade conosco, te riam por suas as nossas fronteiras e o dito de Kennedy — “sou berlinense” — cobraria todo seu sentido. Os Estados Unidos poderiam contar conosco e nós poderíamos contar com eles. Claro está que tudo isso não passa de possibilidade, mas é a única possibilidade de subsistir que para nós se abre.

A. Que loucura. O que você quer é ver a Alemanha Ocidental transformada em satélite dos Estados Unidos da América.

B. Houve submissão quando, pela Aliança das Sete Províncias, a Frísia se ligou, à

Holanda, se não formalmente pelo menos de fato? Houve submissão quando, no interesse da liberdade política, nos unimos aos mesmos Estados Unidos da América e a outras nações, numa comunidade de destinos para fazer frente a um mundo que talvez não tarde em se tornar o mais poderoso, que jamais conheceu a liberdade e que pretende aniquilá-la? Essa “submissão” seria, em verdade, aliança de companheiros que se sentem tanto mais seguros em sua união quanto mais crescem em razão e em liberdade.

A. De tudo que diz, só uma coisa transparece: você não tem os sentimentos do alemão, falta-lhe a autoconfiança do racional. Numa palavra: você não é alemão.

B. Você põe em dúvida minha devoção à Alemanha? Terei de demonstrar quem de nós é mais alemão? Terei demonstrar qual de nós responde melhor aos preceitos de nossos ancestrais? qual de nós melhor percebe o destino da Alemanha e com ele se preocupa e mais gostaria de participar de sua metamorfose espiritual e política? Não quero ir por esse caminho.

A. Muito bem. Mas, que fazer diante da situação internacional de nossos dias? Apenas esperar pelo que vai acontecer? É preciso que, à semelhança da Rússia, desenvolvamos nosso poderio. E, no plano político, devemos apegar-nos a nossa inalienável soberania nacional.

B. Admito que você tenha razão quanto ao primeiro ponto: não devemos esperar passivamente pelo que vier; tanto quanto possível, devemos aumentar nosso poderio. Quanto ao segundo ponto, não estou de acordo: você coloca a política do Estado soberano, da ambição nacionalista acima do interesse de manter, em comum, a liberdade política.

A. É preciso que sejamos nacionalistas, pois os outros países da Europa agem segundo o próprio interesse e exigem a autonomia e o direito de veto.

B. Você acha que justifica seu erro, dizendo que outros caminham para a própria destruição. De minha parte, continuo a defender o princípio de que só nos salvaremos associando-nos, sem qualquer condição, àqueles que colocam a liberdade política acima de tudo. Só o desejo de liberdade, com base no qual edificaremos nosso Estado e julgaremos todo ato de política interna, permitirá que encontremos o sentido de nossa existência política a um nível que nos ponha ao abrigo da catástrofe que se prepara. Isso é exatamente o contrário de uma atitude indigna de nós, a de viver o dia-a-dia, sem maior reflexão. Se todos soubéssemos o que a liberdade política realmente é, o poder atual da oligarquia dos partidos se veria enfrentado pelo poder do espírito e da iniciativa popular, especialmente a dos jovens.

A. No século XIX, a grandeza alemã se apoiou no lema “primeiro, unidade; depois, liberdade”. Continua a ser esse o nosso principal objetivo: unidade do Estado alemão, com fronteiras pelo menos iguais às de 1937.

B. Desde aquela época, ao lema nacionalista já se opunha a ideia federalista de liberdade. Quando Bismark fez triunfar a ideia de centralização, os alemães não aproveitaram o ensejo, que se apresentava, de conquistarem também a liberdade política. Bastou-lhes um constitucionalismo aparente, um Estado jurídico e o milagre econômico da época. O resultado foi a ausência de responsabilidade política. A negligência de um povo passivo e a estupidez política dos que, por acaso, ocupavam o poder vieram a permitir a Guerra de 1914, não desejada pela maioria.

A. Sua apreciação é injusta. Foi uma desgraça que atingiu indistintamente todas as nações europeias. Naquela época, a ideia da unidade nacional era encarada como básica por todos os alemães e, com boa razão, continua a ser assim.

B. Estamos numa encruzilhada: ou os alemães, com sua força econômica e militar, se transformam em joguete da História ou se decidem a forjar o próprio destino.

A. Se renunciarmos ao Estado nacional e nos submetermos aos Estados Unidos da América não teremos necessidade de força militar, pois, na hipótese, esta só existiria para apoiar a política americana, o que nem mesmo você deseja. De qualquer modo, os Estados Unidos da América só nos defenderão se o risco, para eles, não for demasiado grande.

B. É exatamente esse o ponto. Você gostaria de uma resposta que não se pode dar com certeza, assim como não se pode garantir a fidelidade recíproca de dois esposos. O verdadeiro problema é este: qual o risco que vale a pena correr — construir com base em uma fidelidade ou permanecer soberano, isto é, sozinho? A segunda alternativa conduz seguramente à ruína; a primeira é uma aventura nobre, que pode ser bem sucedida, embora não haja certeza disso. Nessa aventura, um dos participantes não pode alcançar êxito sem o outro. Associados a todos os países livres, vivemos sob a hegemonia dos Estados Unidos da América, aos quais sem dúvida sacrificamos nossa soberania em matéria de política exterior, mas não sacrificamos o direito de participar dos debates com a voz da razão e, sobretudo, não sacrificamos nossa soberania em matéria de política interna. Diga você isto ou aquilo, o que se vê no horizonte político é o seguinte: enquanto a Rússia conservar o seu colossal armamento, enquanto pudermos temer, além da Rússia e para época ainda indeterminada, uma China talvez mais poderosa, só sobreviverão os que puderem dispor de poderio militar equivalente. No mundo livre, esse poderio só pode surgir como consequência de uma associação submetida a líder único. Uma aliança não bastaria. São indispensáveis o comando único e uma política externa comum. O mundo livre deve alcançar no plano da liberdade, o que os totalitários alcançam em clima de repressão e de terror. Se a liberdade for incapaz de consegui-lo, não será liberdade autêntica, e perecerá. Desejaríamos nós expor-nos ao provável destino da índia? Em razão de sua neutralidade, de sua pretensa soberania, de sua moralidade herdada de Gandhi, a Índia muito se arrisca a não sobreviver. Se ela for conquistada pela China, as massas hindus e uma indústria desenvolvida à força de terror serão empregadas para conquistar o mundo, ao lado das massas chinesas, há muito inativas. Os tiranos da China se tornarão senhores do mundo. Permaneceremos como espectadores, permitindo que tenham lugar esses eventos, que ainda não são iminentes? Ou, juntando-nos ao Ocidente, contribuiremos para o reforço dessa soma de liberdades que poderá fazer frente à aterrorizante união daquelas enormes massas? Desejaremos continuar a comédia que consiste em viver como um bando de galinhas que se atropelam e se bicam em soberana liberdade, como um punhado de galos presunçosos que batem estupidamente as asas — e que, ao fim, só servem para a degola?

A. Você está sonhando. Eu apoio a Realpolitik.

2. Testemunhas dessa conversa entre A e B, que pudemos observar?

Em geral, as discussões não descem ao fundo da questão. Os interlocutores lançam, um ao outro, frases sem maior fundamento. Muda-se de assunto com frequência. As sentenças não têm centro de interesse comum. As pessoas se deixam levar pela emoção. A todo instante, foge-se a uma resposta direta ao que foi proposto. Não se alcança qualquer resultado. A discussão cessa ou os interlocutores se apartam. Do que decorre isso? E como conseguir debate proveitoso? A esse respeito eu gostaria de deixar expressas algumas ideias.

a) Antes do mais, a falha se deve à confusão e errônea identificação de duas realidades: o juízo de fato e o juízo de valor. Num debate, os interlocutores deveriam pôr-se de acordo a respeito dos fatos. Por outro lado, a vontade, que se propõe um objetivo, não pode ter sua orientação justificada apenas pelo conhecimento. Entretanto, como a vontade de um ser honesto e razoável não é cega, poderia ela ser esclarecida pelo processo de pensamento que se desenvolve durante o debate. Nesses termos, o debate seria bem diferente. Os adversários estariam melhor esclarecidos a respeito do que, no fundo, pretendem. Ambos tentariam limitar-se às “posições últimas”, chamando atenção para as consequências lógicas através da pergunta: “É exatamente isso que você quer?”.

Dessa forma, os interlocutores, inspirados pelo desejo comum da verdade, atingiriam o campo de batalha último, onde as forças reais que eles representassem se veriam face a face. Aí, homens autênticos — a despeito da oposição radical — poderiam encontrar-se em comunicação englobante. Não estariam inteiramente à mercê de forças que os lançam um contra o outro. Concordariam em ser o campo de luta onde, elevando-se acima do conflito, pudessem reencontrar-se como homens, de maneira cavalheiresca. Estariam de acordo num abrangente em cujo seio estão condenados a se encontrar, em dada circunstância da História, como adversários. Eis as condições de um debate proveitoso: ambos devem desejar saber; determinam os fatos verificáveis e as contradições; ouvem um ao outro; nenhum dos dois recorre a subterfúgios. E ambos devem desejar a recíproca manifestação dos propósitos últimos que os movem.

b) Segunda razão para a falha dos debates é neles se contraporem opiniões igualmente justificadas.

Certo é que, para poder discutir, importa supor que todas as opiniões estejam efetivamente justificadas; dessa maneira se demonstra que cada um dos interlocutores tem o outro na conta de pessoa razoável. Mas, de maneira alguma cabe admitir, a priori, que uma opinião seja tão procedente como qualquer outra. Em que medida cada uma delas procede, será demonstrado pelo desenvolvimento e alterações que sofra ao longo do debate.

Quando se tem boa fé, não se pode admitir uma opinião diferente, a não ser para acompanhar, a título de concessão, os argumentos do adversário. O bom interlocutor ajuda intelectualmente aquele com quem se defronta. Essa atitude encontra obstáculos no apego aos interesses materiais, no desejo de ter razão e na escravização a fórmulas vazias de sentido. Nessas condições, não mais se ouve e não mais se responde.

Coisa diversa ocorre quando o obstáculo é representado por uma fé verdadeira. Quer esta se afirmar sem apoios. Não se trata de uma estreiteza de interesse pondo a seu serviço uma intelectualidade que se degrada em sofismas. Trata-se, ao contrário, do próprio desejo de verdade tendo a experiência do choque existencial de forças que não podem manter-se isoladas e não podem atuar, ao mesmo tempo, no mesmo homem. Só elas têm idêntica justificação no confronto incessante.

c) O debate político se ressente, enfim, de concepções demasiado estreitas ou demasiado fantasiosas a respeito do futuro.

Não é possível determinar com exatidão o que, dentre o provável, se concretizará. O potencial e o verossímil são imprevisíveis. Devemos pesar as possibilidades. Desejaríamos ser capazes de discernir as linhas gerais mais simples: elas se alteram mais vagarosamente que o passageiro tumulto do momento. Essencial é saber que o futuro não está determinado: se buscamos divisá-lo é para fazê-lo propício. Desejamos antecipar o que nós próprios faremos surgir. Jamais é completo o conhecimento das realidades que especificam o futuro, de suas condições e potencialidades. É nosso dever buscar discerni-los para assumir, com o máximo de esclarecimento, uma outra responsabilidade — a responsabilidade pelos objetivos que nos propomos.

Nesse ciclo de conhecimento e responsabilidades, sabemos que os eventos decisivos do futuro e, em especial, os impulsos criadores da moral e da fé se encontram para além de nosso horizonte. O imprevisível é um dos componentes da História, mas não podemos incluí-lo em nossas expectativas, nem em nossos cálculos.

Diante da incerteza do futuro, o debate político ganha importância. Essa incerteza nos obriga a fixar os olhos em realidades que podem ser hoje percebidas, e nessas realidades os homens clarividentes enxergam os germes do futuro.

3. Concluamos indagando para que servem os debates políticos. São úteis para nossa auto educação política e nos preparam para a ação. Correspondem ao fórum da vida política da nação. Se outra coisa fossem, não passariam de palavreado vazio, só de interesse para o psicólogo e para os técnicos em manipulação política.

Qual é, neste caso, o papel da reflexão filosófica? Esclarece o debate, esclarecendo-lhe os princípios e objetivos, mantendo presentes ao espírito os fatos essenciais e sua hierarquia, sondando o destino da humanidade e, em resumo, incluindo a política na indagação: para que vivemos nós?

A FILOSOFIA NO MUNDO (Trabalho Segundo Ano)

Karl Jaspers (1883-1969)

KARL JASPERS (1883-1969)

A FILOSOFIA NO MUNDO (In. Introdução ao pensamento filosófico, 1965)

 

1. Seja a filosofia o que for, está presente em nosso mundo e a ele necessariamente se refere.

Certo é que ela rompe os quadros do inundo para lançar-se ao infinito. Mas retorna ao finito para aí encontrar seu fundamento histórico sempre original.

Certo é que tende aos horizontes mais remotos, a horizontes situados para além do mundo, a fim de ali conseguir, no eterno, a experiência do presente. Contudo, nem mesmo a mais profunda meditação terá sentido se não se relacionar à existência do homem, aqui e agora.

A filosofia entrevê os critérios últimos, a abóbada celeste das possibilidades e procura, à luz do aparentemente impossível, a via pela qual o homem poderá enobrecer-se em sua existência empírica.

A filosofia se dirige ao indivíduo. Dá lugar à livre comunidade dos que, movidos pelo desejo de verdade, confiam uns nos outros. Quem se dedica a filosofar gostaria de ser admitido nessa comunidade. Ela está sempre neste mundo, mas não poderia fazer-se instituição sob pena de sacrificar a liberdade de sua verdade. O filósofo não pode saber se integra a comunidade. Não há instância que decida admiti-lo ou recusá-lo. E o filósofo deseja, pelo pensamento, viver de forma tal que a aceitação seja, em princípio, possível.

2. Mas como se põe o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas universidades. Atualmente representam uma posição embaraçosa. Por força da tradição, a filosofia é polidamente respeitada, mas, no fundo, objeto de desprezo. A opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e carece de qualquer utilidade prática. É nomeada em público, mas — existirá realmente? Sua existência se prova, quando menos, pelas medidas de defesa a que dá lugar.

A oposição se traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo; está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano geral para mergulhar, através de trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de atividade prática ou intelectual; quanto ao resto, bastará ter “opiniões” e contentar-se com elas.

A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente.

E surgem os detratores, que desejam substituir a obsoleta filosofia por algo de nino e totalmente diverso. Ela é desprezada como produto final e mendaz de uma teologia falida. A insensatez das proposições dos filósofos é ironizada. E a filosofia vê-se denunciada como instrumento servil de poderes políticos e outros.

Muitos políticos veem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam de uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem sensatos.

Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se ensinem, menos estarão os homens arriscados a se deixar tocar pela luz da filosofia. Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição. A auto complacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um nome literário — tudo isso proclama a antifilosofia. E os homens não o percebem porque não se dão conta do que estão fazendo. E permanecem inconscientes de que a antifilosofia é uma filosofia, embora pervertida, que, se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação.

3. O problema crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo não quer. A filosofia é, portanto, perturbadora da paz.

E a verdade o que será? A filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do ser verdadeiro segundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o significado e substância da verdade única. Para nós, a verdade não é estática e definitiva, mas movimento incessante, que penetra no infinito.

No mundo, a verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao extremo, porém o despe de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o filósofo vê a verdade revelar-se a seus olhos, graças ao intercâmbio com outros pensadores e ao processo que o torna transparente a si mesmo.

Quem se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que ele faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com seus concidadãos, do destino comum da humanidade.

Eis por que a filosofia não se transforma em credo. Está em contínua pugna consigo mesma.

4. A dignidade do homem reside em perceber a verdade. Só a verdade o liberta e só a liberdade o prepara, sem restrições, para a verdade. É a verdade o significado último para o homem no mundo? É a veracidade o imperativo último? Acreditamos que sim, pois a veracidade sem reservas, que não se perde em opiniões, coincide com o amor. Nossa força está com agarrarmos os fios de Ariadne que a verdade nos lança. Mas a verdade só é a verdade total. É preciso que a verdade múltipla seja levada a convergir para a unicidade. Jamais chegamos a possuir essa verdade integral. Eu a nego quando vou ao extremo da afirmação, quando erijo o que sei em absoluto. Eu a nego também quando tento sistematizá-la em um todo, porque a verdade total não existe para o homem e porque essa ilusão o paralisa.

Todo aquele que se dedica à filosofia quer viver para a verdade. Vá para onde for, aconteça-lhe o que acontecer, sejam quais forem os homens que ele encontre e, principalmente, diante do que ele próprio pensa, sente e faz — está sempre interrogando. As coisas, as pessoas e ele próprio devem tornar-se claros a seus olhos. Ele não se afasta de seu contato. Ao contrário, a ele se expõe. E prefere ser desgraçado em sua busca da verdade a ser feliz na ilusão. Faz-se preciso que o que é se ponha manifesto. É possível certa confiança, mas não a certeza. A verdade, mesmo quando nos abate, revela — se for realmente a verdade — aquilo que nos salva. E produz-se o milagre da filosofia: se recusarmos todos os enganos, afastarmos todos os véus, expusermos à luz todas as insinceridades, se nos obstinarmos a avançar de olhos abertos, sujeitando nossas críticas a outras críticas, essa crítica terminará por não ser destruidora. Muito ao contrário, veremos, por assim dizer, revelar-se o próprio fundamento das coisas onde vemos luz, como um restaurador vai-se apercebendo de um Rembrandt por sob a pintura posterior que o escondia.

E se a luz não se revelar? Se, ao fim, o homem descobrir a máscara de Górgona e vir-se transformado em pedra? Não temos o direito de olvidar que isso é suscetível de acontecer. A filosofia se expõe a abismos diante dos quais não deve fechar os olhos, assim como não pode esperar que desapareçam por encanto. Torna-se mais clara do que nunca a questão que, desde o início, se pôs para o homem. O “sim” para a vida é a grande e bela aventura, porque permite a realização da razão, da verdade e do amor. O “não” à existência, traduzido pelo suicídio, é a realidade paia homens diante de cujo segredo permanecemos calados. Põe-se fronteira que não temos o direito de esquecer.

5. A filosofia se destina ao homem enquanto homem ou apenas a uma elite fechada em si mesma? Para Platão, poucos homens são aptos para a filosofia e só adquirem tal aptidão após longa propedêutica. Há dois tipos de vida na Terra, disse Plotino, um próprio dos sábios e o outro da massa dos homens. Também Espinosa só espera filosofia do homem excepcional. Kant, porém, acredita que a rota por ele traçada pode tornar-se um caminho real: a filosofia aí está para todos. E seria mau se fosse diferente. Os filósofos não passam de elaboradores e guardiões de atas, onde tudo deve estar justificado com precisão máxima.

Contra Platão, Plotino, e quase toda a tradição, acompanhamos Kant. Trata-se de uma decisão filosófica de” grande alcance para a atitude interior do filósofo. Corresponde a uma recusa de se prosternar diante da realidade; foi assim até agora e assim é hoje; mas não deve permanecer assim e assim não continuará. Dar-se-ão ouvidos a exigências do homem como homem, exigências frequentemente ocultadas e reduzidas de importância, afastadas e negligenciadas. A decisão cabe a cada indivíduo. Estaremos, talvez, transformando em virtude a trágica ausência de unia filosofia genial em nosso tempo? Não, a experiência de nossa própria mediocridade, do homem que, embora simples homem, pode compreender os grandes homens do passado, apropriar-se do que realizaram, aproximar-se deles, cheio de respeito, mas sem divinizá-los — essa experiência é encorajadora. O que está a nosso alcance está ao alcance de todos ou de quase todos, bastando que verdadeiramente o queiram.

Há, na História, uma grande exceção. Os padres da Igreja cristã considerando que lhes tocava o dever de enunciar a salvação e de praticar obras de amor, dirigiam-se a todos os homens. E encontravam um argumento contra os filósofos gregos no fato de estes só se dirigirem aos eleitos: Lema da Igreja foi: ninguém que deseje crer está excluído.

Aquilo que se revela, a plena claridade, nos sublimes pensamentos dos eleitos está contido na fé mais simples.

Contudo, tal solicitude pelas massas é ambivalente: deseja dominá-las e, ao mesmo tempo e no interesse de dominá-las, tolera a mentira e a superstição e se envolve no político. Em razão disso, esse grande exemplo histórico não nos pode servir de modelo.

Outro inimigo da filosofia independente e, portanto, da liberdade do homem é o pensamento pretensamente democrático. Há razão em proclamar: o que não convém a todos deve, um dia, desaparecer. O que não desperta qualquer eco é, a priori, desprovido de realidade. Mas é errôneo afirmar: sabemos qual seja essa realidade; o que hoje é, sempre será; o que não atua agora, jamais atuará; o homem não se modifica.

Antes, caberia dizer: o que ainda está isolado poderá expandir-se; o que hoje não encontra eco poderá encontrá-lo amanhã; e, principalmente, o que é real para reduzido número de pessoas poderá tornar-se a realidade suprema de uma época e, sob tal forma, perpetuar-se; o que ainda não atingiu as massas poderá penetrá-las no futuro.

Para libertar-se é inevitável que a verdade desça às massas, ao burburinho sonoro e confuso dos homens. A alternativa seria o domínio sobre as massas, a censura, a educação padronizada. E os seres humanos se tornariam matéria-prima para os déspotas.

Na incerteza, uma só coisa permanece: crer na possibilidade de liberdade humana e, alimentando essa crença, conservar-se ligado à Transcendência, sem a qual aquela convicção soçobraria.

6. Continua-se a afirmar que, no mundo, a filosofia está consciente de sua impotência.

Desperta poucas respostas e não dispõe de nenhum poder de modelar o mundo; não é, de maneira alguma, um fator da História. Assim pareceu até agora.

Mas a filosofia está longe de ser impotente no que diz respeito ao indivíduo. Aí ela constitui, muito ao contrário, a grande força que leva o homem a encontrar o caminho para a liberdade. Só ela possibilita a independência interior. Ganho essa independência exatamente quando e onde pareço completamente dependente, ou seja, quando reconheço que — em minha liberdade, em meu amor, em minha razão — fui dado a mim mesmo. Nenhuma dessas coisas está sob meu poder, eu não as faço surgir. Mas tudo quanto eu fizer surgir delas derivará.

Se atinjo o ponto em que sou dado a mim mesmo, distancio-me de rodas as coisas e, inclusive, de mim. Como que de um plano de observação externo a mim — em verdade, inatingível — contemplo o que acontece e o que faço. É como se me fosse preciso atingir aquele plano para mergulhar na realidade histórica. De lá jorra a luz que faz crescer minha liberdade interior. Torno-me independente na medida em que vejo as coisas a essa luz.

Essa independência é uma quietude, sem violência e sem orgulho. Tanto menos soberba quanto mais segura de si mesma. Evidencia-se permanecendo em obscuridade.

Na independência, a liberdade não permanece vazia. Limitar-se a si mesmo não seria independência. A independência quer participar do mundo. Age. Ouve e responde aos apelos da sorte. Não foge às exigências do dia. Quando o destino parece deter as rédeas, ousa envolver-se em situações de risco, na esperança de vir a dominá-las.

Não obstante, aceita sempre critérios que não pode trair porque provêm de sua mesma origem. Traí-los seria aniquilar-se.

7. A independência do filósofo torna-se falsa quando se mescla de orgulho. No homem autêntico, o sentimento de independência sempre se acompanha do sentimento de impotência, o entusiasmo de poder sempre se acompanha do desespero de não poder, a esperança sempre se acompanha de um olhar lançado ao fim. Filosofar dá-nos lucidez total acerca das várias formas de nossa dependência, mas de maneira tal que, em vez de permanecermos esmagados por nossa impotência, encontramos, a partir de nossa independência, meio de recuperação.

Eis dois exemplos de como isso ocorre no pensamento:

a) O quantitativo tem predominância sobro o qualitativo. O universo, no seio do qual, a Terra, com todos os seus habitantes, não passa de um grão de poeira, tem predominância sobre nosso planeta. Na hierarquia em que figuram matéria, vida, alma e espírito, cada um dos estágios tem predominância sobre o seguinte. Ao fim, é a massa que tem preeminência. Diante dela, o indivíduo não conta. Só conta o universo, a matéria, a massa, o que tem peso.  Invertamos, porém, a escala de valores: o que há de mais precioso no universo é o homem; na hierarquia das realidades, é o espírito; entre as massas, o indivíduo como ele próprio; entre as obras da natureza, as criadas pela arte humana. Se julgamos as coisas de maneira diversa, é por sucumbirmos à tentação do quantitativo e renunciarmos ao senso do humano.

b) O conjunto da História que ninguém pode conhecer, que não precisamos imaginar necessariamente como uma totalidade — avassala-nos. O indivíduo sente-se indefeso. Tudo o que ele é, é determinado por aquele conjunto. E ele deve curvar-se. Entretanto, o que se passa com a humanidade passa-se como resultado das forças ínfimas de bilhões de indivíduos. Cada um é responsável pelo que faz, pela maneira como vive. Parece-nos que a História não tenha sentido, mas ela está penetrada de razão. E essa razão depende de nós.

Permanece, porém, o fato de que diretamente real para nós é o meio que, de imediato, nos cerca. Nosso primeiro dever é para com ele. Quando desesperamos do futuro, porque não podemos orientar o curso dos acontecimentos, ou quando nos exaurimos em clamores vãos, como se disso dependesse o movimento do universo, estamos esquecendo o que nos toca mais de perto. Afirmamo-nos na realidade desse pequeno mundo que nos cerca. E, através dele, participamos do conjunto.

8. Na época atual, fazemo-nos conscientes de nossa impotência divisando-lhe um ângulo novo. Todos sabemos que a democracia é corrupta no seu operar, embora continue sendo a única via possível para a liberdade. Mais duvidoso é seu alcance entre povos em que ela não tem origem histórica própria.

Satisfazer-se com o milagre econômico é o ópio do mundo livre. O resto do mundo inveja esse milagre, mas não tem as condições capazes de propiciá-lo e lança ao mundo livre a culpa de suas desventuras.

No mundo ocidental, o econômico predomina sobre o político. E isso equivale a dizer que o Ocidente está cavando a própria cova. Nele, a liberdade política se reduz constantemente. É, com frequência, incompreendida. Assiste-se à desaparição do sentimento de liberdade e do espírito de sacrifício.

Em todo o mundo, manifestam-se tendências à ditadura militar e ao totalitarismo, pois a liberdade se degrada. Os povos se fazem presa dos poderosos.

Se continuar, a explosão demográfica levará necessariamente a uma conflagração que exterminará inúmeras vidas humanas.

Os povos de cor (mais de dois terços da humanidade) voltam-se contra os brancos, cheios de ressentimento e com determinação crescente.

A bomba atômica pesa sobre todos nós. Por algum tempo, ela continuará a impedir a grande conflagração que (não sabemos quando) provocará o aniquilamento total, se os homens continuarem a ser o que são hoje.

Até agora, quando Estados, povos ou civilizações pereciam, outros lhes tomavam o posto. Um elemento permanecia — a humanidade. Atualmente, caberia perguntar se a humanidade não está a ponto de cometer suicídio generalizado.

No ínterim, podemos gozar a vida, permanecendo, porém, ao pé do cadafalso. Ou afastamos o perigo mortal ou deveremos estar preparados para a catástrofe.

É escandalosa a tranquilidade do mundo ocidental, tranquilidade baseada na presunção de que essa agradável maneira de viver lerá duração indefinida. As consequências das ilusões voluntárias de antes e após 1914 não nos terão ensinado ao que leva essa irresponsabilidade política e moral?

Nossa época vive entre dois abismos. Compete-nos escolher: deixar-nos tombar no abismo da ruína do homem e do universo, com a consequente extinção de toda vida terrena, ou cobrar ânimo para nos transformarmos, dando surgimento ao homem autêntico, ante o qual se abrirão possibilidades infinitas.

9. Em tal contexto, qual o papel da filosofia?

Ensina, pelo menos, a não nos deixarmos iludir. Não permite que se descarte fato algum e nenhuma possibilidade. Ensina a encarar de frente a catástrofe possível. Em meio à serenidade do mundo, ela faz surgir a inquietude. Mas proíbe a atitude tola de considerar inevitável a catástrofe. Com efeito, apesar de tudo, o futuro depende também de nós.

Se fosse vigorosa em sua elaboração, convincente por seus argumentos e digna de fé pela integridade de seus expositores, a filosofia poderia tornar-se instrumento de salvação. Só ela tem o poder de alterar nossa forma de pensamento.

Mesmo diante do desastre possível e total, a filosofia continuaria a preservar a dignidade do homem em declínio. Numa comunidade de destinos, que se apoie na verdade, o homem encara face a face seja o que for.

Não se confunde o declínio com o nada. Em meio ao desastre, a última palavra cabe ao homem, que ama e conserva confiança incompreensível no fundamento das coisas.

Para falar sob forma de enigma: a origem de que brotaram o universo, a terra, a vida, o homem e a História encerra possibilidades que nos são inacessíveis. Enfrentando de frente o desastre, asseguramo-nos dessas possibilidades.

Fazemos uma tentativa, à qual outras hão de seguir-se, continuadamente. Mas, presentes, por um instante, nessa tentativa, o amor e a verdade atestam tratar-se de mais que uma tentativa. Uma palavra de eternidade foi pronunciada.

Nenhum pensamento suscetível de ser concretizado, nenhum conhecimento, nada de fisicamente tangível, nenhum dos enigmas por nós mencionados pode adentrar a eternidade.

Mas, para além de todos os enigmas, o pensamento penetra no silencio pleno de insondável razão.